segunda-feira, 12 de julho de 2021

A Virgem e o Cigano. DH Lawrence. «A seguir, o pároco entregou à filha uma conta-corrente: o que ela lhe devia, os juros, a importância descontada na sua pequena mensalidade»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Onde tu foste muito tonta, Yvette, repreendeu-a Lucille, a pobre Lucille, que estava muito perturbada, foi em teres-te deixado comprometer ante todos eles. Devias saber que descobririam. Podia ter-te arranjado o dinheiro e poupar-te a todo este aborrecimento. É perfeitamente horrível! Mas tu nunca pensas com antecedência qual virá a ser o resultado das tuas acções! Imagina, a tia Cissie a dizer-te todas aquelas coisas! Que horror! Que diria a mãe, se tivesse ouvido? Quando as coisas corriam muito mal, pensavam na mãe e desprezavam o pai e toda a má raça dos Saywells. A mãe delas, claro, pertencera a um mundo mais elevado, apesar de talvez mais perigoso e mais imoral. Decididamente, mais egoísta, mas com gestos de maior ostentação. Mais sem escrúpulos e mais facilmente levado à desonra, mas menos humilhante. Yvette sempre considerara que recebera a sua fina e delicada carnação da mãe. Os Saywells eram todos um pouco coriáceos e imundos, algures dentro deles. Mas, por outro lado, os Saywells nunca deixavam ninguém ficar mal, enquanto A-que-fora-Cynthia abandonara o pároco com um grande estoiro e deixara as suas criancinhas com ele. As suas criancinhas! Isso era uma coisa que não lhe perdoavam!

De uma maneira indistinta, depois da discussão, Yvette começou a compreender qual era a sua outra santidade, a santidade da sua carne e do seu sangue limpos, que os Saywells, com a sua denominada moralidade, haviam conseguido corromper. Tinham sempre querido corromper, pois não possuíam crença, eram os descrentes da vida. Enquanto, talvez, A-que-fora-Cynthia não passara de uma descrente moral. Yvette andou por ali entorpecida, adoentada, confusa. O pároco pagou o dinheiro à tia Cissie, com grande raiva dessa senhora. O descontrolado tumor da sua raiva ainda estava agitado. O que ela teria gostado de fazer era anunciar a delinquência da sobrinha no boletim da paróquia. Era uma angústia, para aquela mulher destruída, o facto de não poder publicar essa notícia, para conhecimento de todo o mundo. O egoísmo! O egoísmo! O egoísmo!

A seguir, o pároco entregou à filha uma conta-corrente: o que ela lhe devia, os juros, a importância descontada na sua pequena mensalidade. Porém, lançou a crédito dela um guinéu, que era a taxa que ele tinha de pagar por cumplicidade. Como pai da culpada, disse ele, com humor, sou multado num guinéu. Com isso, considero-me ilibado de responsabilidades. No que respeitava a dinheiro, era sempre generoso. Parecia que, de algum modo, ele pensava que, sendo liberal com o dinheiro, poderia chamar-se a si próprio um homem generoso. Mas era o contrário, ele usava o dinheiro e até a generosidade como um domínio sobre ela. Mas o pai deixou esquecer aquele assunto. Nesta altura já estava mais divertido do que qualquer outra pessoa, a julgar pelas aparências. Pensava, ainda, que agora estava a salvo.

A tia Cissie, contudo, não conseguia libertar-se da sua agitação. Uma noite, quando Yvette se sentira miserável e fora muito cedo para a cama, quando Lucille estava fora, numa festa, e quando ela jazia, sem forças nas pernas, que lhe doíam com uma espécie de insensibilidade e aviltamento, a porta abriu-se suavemente e apareceu a tia Cissie, a sua face esverdeada e acinzentada a espreitar pela abertura. Yvette deu um salto, aterrorizada. Mentirosa! Ladra! Patife! Egoísta!, silvou a maníaca face da tia Cissie. Pequena hipócrita! Mentirosa! Egoísta! Estupor ambicioso! Havia um ódio tão extraordinário e tão impessoal naquela máscara cinzento-esverdeada e naquelas palavras frenéticas, que Yvette abriu a boca para gritar de histeria. Mas a tia Cissie fechou a porta tão subitamente como a abrira e desapareceu». In DH Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN 978-972-370-164-7.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT

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