Norte de África
«(…) Assim que chegaram perto o
suficiente para serem vistas, Mirina acenou com a lança no ar para chamar a
atenção dos outros. A água agora batia na sua cintura e Lilli ia agarrada às
suas costas. Os homens a encararam incrédulos, o que não era de espantar. Eles
nos viram!, arquejou Mirina, avançando com passos bambos pela água lamacenta.
Estão sorrindo e acenando para subirmos a bordo... Ao se aproximar do barco,
porém, viu que os homens não estavam sorrindo, mas sim gesticulando frenéticos,
com os semblantes contorcidos pelo medo. Instantes depois, agoniados, os homens
puxaram primeiro Lilli, depois Mirina para dentro do barco e, logo em seguida,
aliviados, apontaram para a água enquanto desfiavam longas explicações num
idioma estrangeiro. O que foi?, quis saber Lilli, segurando-se na túnica
enlameada da irmã. O que eles estão dizendo? Quem me dera eu entendesse, murmurou
Mirina. A julgar pela aparência, os pescadores eram o pai e dois filhos
adultos. Não pareciam do tipo que se deixava abalar com facilidade. Eu acho...
O barco então balançou e os
rapazes, na mesma hora estenderam a mão para amparar o pai. Mirina viu os três
olharem nervosos para a água e entendeu, por fim, o motivo de seu alarme. Uma
forma comprida e malhada rodeava o barco, deslizando o imenso corpo pela água
barrenta. Seria um peixe grande? Mas ela não viu nem cabeça nem cauda, somente
um corpo interminável da mesma grossura de um ser humano. Era uma cobra
gigantesca. O que houve?, ganiu Lilli, sentindo a súbita tensão. Me diga! Mirina
mal conseguia falar. Já tinha visto cobras grandes, claro, mas nunca algo como
aquilo. Ah, nada, conseguiu articular, enfim. Só umas algas presas no casco. Após
alguns segundos de aflição, a cobra pareceu perder interesse pelo barco, e os
homens relaxaram e recomeçaram a conversar. Verificaram mais algumas armadilhas,
mas a pescaria foi magra: apenas uma dúzia de peixes e um par de enguias.
Apesar disso, eles pareciam animados ao recolher as varas e, a duras penas,
começar a impulsionar o barco para a frente com movimentos curtos e ritmados. Para
onde estamos indo?, sussurrou Lilli, trémula de cansaço. Mirina puxou a cabeça
da irmã para junto do peito e afagou seu rosto sujo de lama. Para a cidade
grande, leoazinha. A Deusa da Lua está nos esperando, lembra-se?
Aurora
Se o dr.
Ludwig ficou surpreso ao me ver sentada junto ao portão de embarque, folheando
com gestos casuais uma revista de bordo abandonada, não demonstrou nada. Apenas
meneou a cabeça como se minha presença já fosse esperada e ofereceu: café? Assim
que ele se afastou, relaxei de alívio e exaustão. Por mais calma que aparentasse
estar, as últimas horas sem dúvida tinham sido as mais agitadas da minha vida,
e eu não havia parado sequer para respirar depois de encontrar o caderno da avó
no sótão. Por sorte, meu pai tinha-se mostrado muito disposto a uma pequena
aventura e insistira em me levar até ao aeroporto. Mas confesso que estou um
tanto curioso, dissera ele, de modo sensato, durante a nossa curta paragem em
frente à minha faculdade em Oxford, enquanto eu lutava para enfiar no banco de
trás do Mini a mala feita às pressas.
É só por uma ou duas noites, respondi, sentando-me no banco do
carona e ajeitando meu rabo de cavalo. Talvez três. O motor continuava ligado e
meu pai ainda segurava o volante, mas o carro não andou. E as aulas que precisa
dar? Eu me remexi no banco, incomodada. Antes que o senhor perceba, eu já vou
ter voltado. É uma viagem de pesquisa. Na verdade, uma pessoa está pagando para
ir a Amsterdão...» In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora
Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
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