«(…) Não soube ao certo se o estado da roupa era um indício de pobreza ou se apenas seguia o modo etíope de tratar as crianças. Quando morávamos em Adis Abeba, todos vestiam farrapos e pareciam ser negligenciados pelos pais. Quando pequena, eu considerava essa negligência a epítome da liberdade. Queria ser deixada em paz, brincar por quanto tempo desejasse, fosse dia ou noite, em vez de ser obrigada a trabalhar. A mãe de Sahra parecia ser tão indulgente quanto a minha fora austera e proibidora. Mas o vestido da minha meia-irmã não era a única coisa em frangalhos. O apartamento se encontrava no mesmo estado. Estávamos num cómodo apertado, separado dos demais espaços por um fino lençol de algodão que já fora branco, mas estava manchado pela fumaça e pelo pó. O cimento do prédio residencial já tinha sido liso e plano, e agora, como tantos outros apartamentos partilhados, tinha rachaduras e buracos grandes e pequenos que eram preenchidos por pequenas poças d’água. Nenhum dos ocupantes podia arcar com o custo dos reparos, e eles não se uniam para levantar o dinheiro necessário para a manutenção e a limpeza das áreas comuns. No fim da tarde, mosquitos gordos zumbiam e se lamentavam perto dos meus ouvidos. Decidi fazer uso do meu melhor árabe e amárico para propor que secássemos as poças d’água.
Minha madrasta dera de ombros
numa encantadora manifestação de conformismo. É a vontade de Alá, disse. As
poças secarão quando parar de chover. Alá traz a chuva e Alá faz o sol brilhar.
A terceira esposa do meu pai aceitava a vida da maneira que se apresentava a
ela. Como minha mãe, ela era passiva, mas sua passividade era diferente. As
duas eram versadas em autopiedade, resignadas às circunstâncias. Porém, minha
mãe amaldiçoava, ralhava, gritava, exigia e insultava aqueles que considerava
responsáveis. A mãe de Sahra sorria e repreendia com doçura; abaixava o olhar e
parecia contente. O que quer que o próximo dia lhe trouxesse seria a vontade de
Alá, e ela não via razão para desafiar os acontecimentos, seu marido nem seu
Deus. Todas as suas frases terminavam com Inshallah, é a vontade de Alá. Era este o seu método de
sobrevivência. Não tive a energia nem a habilidade linguística para sugerir
que, embora pudéssemos deixar que Alá se encarregasse de coisas como trazer a
chuva e o brilho do sol, talvez pudéssemos secar as poças nós mesmas. Tive
malária duas vezes durante a infância e aprendi nas aulas de ciências e
higiene, tanto em Juja Road quanto na Escola Feminina de Ensino Fundamental Muçulmano,
que o parasita responsável pela malária deposita seus ovos na água parada. Para
evitar a doença, combatíamos os insectos com veneno e dormíamos sob filós, mas
tínhamos também que secar as poças d’água que se formavam no nosso complexo
habitacional e até nas ruas em torno da nossa casa. É claro que nunca
conseguimos erradicar as poças de nosso bairro, mas, enquanto crescia, sequei
nosso complexo habitacional em Nairóbi com o zelo de uma sobrevivente e contei
a meus parentes somalis sobre animais invisíveis que se reproduziam na água.
A pequena Sahra e sua mãe levavam
uma vida bastante comunitária. Durante todo o dia as pessoas entravam e saíam
do edifício que abrigava o complexo. Num dos cantos do pátio havia uma grande
jarra d’água feita de pedra, e os homens entravam, apanhavam um pouco de água
com a concha de alumínio e bebiam directamente a partir dela. As mulheres
usavam a mesma jarra para fazer chá e encher suas panelas. A certa altura
daquela tarde, alguém disse algo sobre a higiene: lave as mãos antes de usar
a jarra. Todos bebemos daí. O quê?, disse um jovem com um sorriso confuso. Lavar
as mãos com o quê? Não há mais água. De facto, a concha metálica bateu contra o
fundo da jarra de pedra fazendo muito barulho, indicando que estava vazia, e as
senhoras mais velhas começaram a se lamentar e gritar, pedindo às mais novas
que fossem buscar água. As preocupações com a higiene se perderam no meio do
burburinho. Todos falavam, numa balbúrdia amigável de fofocas e críticas aos habash, palavra usada pelos somalis
para se referir aos etíopes. Todas as frases que diziam eram pontuadas por expressões
como pela vontade de Alá ou pelo amor de Alá.
Sentada
no carro que me levava para longe do meu pai após tê-lo visto pela última vez, pensei
no que teria me afastado da minha família e dele durante tanto tempo: a regra
que dita que um homem deve contar com a obediência de suas mulheres, de suas
esposas e de suas filhas, e que elas devem se submeter a ele. Se as mulheres de
um homem rejeitarem a submissão, elas . atingem; sua reputação, sua autoridade,
a ideia de que ele é leal, forte e cumpridor de sua palavra. Essa ideia faz
parte de uma crença mais ampla segundo a qual os indivíduos não têm importância,
suas escolhas e seus desejos não têm significado, principalmente se os indivíduos
em questão forem mulheres. Essa ideia de honra e direito masculino restringe
drasticamente as escolhas das mulheres». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to
America, Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN
978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011,
ISBN 978-848-109-928-7.
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