«(…) Acompanhemos o primeiro dia de trabalho do novo vice-rei, já instalado no seu palácio levantou-se às 5 horas, ouviu missa e, na sala real, deu audiência a todos os que lhe quiseram falar. Depois, querendo demonstrar o seu empenhamento pessoal nas armadas que se aprestavam, foi à Ribeira dar calor à armada da colecta e às que seguiriam de socorro para Ceilão e para o Norte, bem como a outros navios. Aproveitou para visitar, na Ribeira, a Casa da Fundição e a do Armazém. Regressou ao palácio para jantar. De tarde reuniu o Conselho de Estado, onde analisou as cartas remetidas de Ceilão em meados do mês anterior. Estuda agora a possibilidade de enviar, com urgência, reforços para esta ilha, bem como para Tivim, ameaçado pelas tropas do Idalxá. Manifesta também o desejo de se deslocar em breve a esta praça.
O conde de Sarzedas cumpre, diariamente, uma agenda bem preenchida
de tarefas governativas. Recebe embaixadores, fidalgos, o capitão-mar da
cidade, o da armada do Norte e os de outros navios, o patriarca da Etiópia e
indigitado arcebispo de Goa, o inquisidor, os vigários-gerais das Ordens, sobretudo o de São Domingos, ou os simples
religiosos. Dá audiência a diversas pessoas em simultâneo, incluindo, por
vezes, elementos da nobreza. Atende, no seu palácio, capitães-mores e os
procuradores de Damão e de outras cidades do Norte e do Sul, para além de
muitas pessoas. Reúne-se, frequentemente, com o secretário de estado, com o
vedar da Fazenda ou com os dois em conjunto, mas também com os ouvidores-gerais
do Cível e do Crime, com os ministros da Relação, dos Contos e da Mesa do Desembargo
do Paço. Convoca, com regularidade, o Conselho de Estado e o Conselho da
Fazenda, que faz reunir na denominada Sala da Rainha, cujas actas são, em bom número,
hoje conhecidas. Despacha petições, envia cartas e ordens para diferentes
partes e sobre variadíssimos assuntos do Estado.
A Ribeira é um dos locais que o vice-rei visita assiduamente. O apresto dos navios para o socorro de Ceilão
e dos que seguiriam para o Norte, ou a partida da armada dos periches (pequeno barco, do tipo canoa ou almadia,
usado no Canará e Malabar) que acompanhava a
cáfila com destino a Cambaia e o carregamento das naus do Reino, são as razões
que sobretudo invoca para tais deslocações. Mas também o fabrico de amarras e âncoras
foram motivo da presença de Rodrigo Silveira no mesmo local, em dois dias muito
próximos. O Tribunal da Relação,
a Casa dos Contos, a Matrícula, a Casa da Pólvora e a Mesa do Desembargo do Paço
foram outras das instituições que algumas vezes receberam a visita do vice-rei.
A 4 de Setembro vai a Tivim
observar o andamento dos trabalhos de fortificação, pelo que teve de se
levantar às 4 horas da manhã, regressando já noite dentro. A consciência da importância da sua presença
em certos actos públicos de culto e, por certo, a sua condição de cristão,
levou-o também a deslocar-se ao Convento da Madre de Deus em Daugim, por ocasião
das festas da Natividade e da Imaculada Conceição, ao dos Agostinhos para a
festa do Bom Jesus no primeiro de Janeiro e no dia do seu patrono e à festa de
São Francisco de Assis, celebrada pelos Franciscanos no convento da cidade.
Também honrou, em pessoa, os Carmelitas Descalços na festa da padroeira, Santa
Teresa D’Ávila onde, aliás, se confessou, comungou e assistiu a um sermão. Na
festividade de Santa Catarina, promovida anualmente pelo Senado de Goa,
incorporou-se na procissão, como também participou em idêntico acto litúrgico e
noutros, comemorativos da Restauração, na catedral.
A festa de São Francisco Xavier mereceria uma visita ao Convento
do Bom Jesus, para ouvir a pregação em vésperas do dia comemorativo em honra do
Apóstolo das Índias. Para sua grande consolação, o corpo do santo já lhe havia
sido aqui mostrado, logo após a sua chegada a Goa. Na Igreja de São Caetano dos
Teatinos, assistiu, em dia da Exaltação de Santa Cruz, aos actos solenes aí
realizados, tendo sido padrinho de um judeu que se convertera ao cristianismo quando
detido no cárcere da Inquisição (maldita) de Goa. Nesta azáfama diária que nem conheceu descanso
ao domingo ou dia santo, três assuntos parecem ter dominado a agenda política do
conde vice-rei nos pouco mais de quatro meses em que dela deixou registo o
apresto das armadas que faziam o comércio regional e garantiam o abastecimento às
guarnições das diversas fortalezas portuguesas o agravamento da situação
militar, quer no território de Goa, quer, sobretudo, em Ceilão e onde os
portugueses davam mostras de não poderem resistir por muito mais tempo e, por último,
a falta de recursos humanos, navais e, mormente, financeiros, que permitissem remediar
de imediato a difícil situação em que o Estado da Índia se encontrava. Era urgente que Portugal
enviasse meios para enfrentar a crise, sob pena de perder-se o Estado da Índia,
concluía o vice-rei no final de uma reunião do Conselho da Fazenda». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde
de Sarzedas, Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras
Margens, CNCDPortugueses, 2001, ISBN 972-787-052-X.
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