sábado, 24 de julho de 2021

José Saramago. Memorial do Convento. «… foi enterrado um rapazito de quem não chegou a averiguar-se o nome e que levou acompanhamento completo, iam os pais, e os avós, e os tios, outros parentes, quando o infante Pedro chegar ao céu e souber destas diferenças, vai ter um grande desgosto»

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«(…) Mas Deus, ou quem lá no céu decide da duração das vidas, tem grandes escrúpulos de equilíbrio entre pobres e ricos, e, sendo preciso, até às famílias reais vai buscar contrapesos para pôr na balança, a prova é que, por compensação da morte desta criança, morrerá o infante Pedro quando chegar à mesma idade, e porque, querendo Deus, qualquer causa de morte serve, a que levará o herdeiro da coroa de Portugal será o tirarem-lhe a mama, só a infantes delicados isto aconteceria, que o filho de Inês Antónia, quando morreu, já comia pão e o mais que houvesse. Equilibrada a contagem, desinteressa-se Deus dos funerais, por isso em Mafra foi só um anjinho a enterrar, como a tantos outros sucede, mal se dá pelo acontecimento, mas em Lisboa não podia ser assim, foi outra pompa, saiu o infante da sua câmara, metido no caixãozito que os conselheiros de Estado levavam, acompanhado de toda a nobreza, e ia também el-rei, mais os irmãos, e se ia el-rei seria por dor de pai, mas principalmente por ser o falecido menino primogénito e herdeiro do trono, são as obrigações do protocolo, vieram descendo até ao pátio da capela, todos de chapéu na cabeça, e quando o caixão foi colocado nas andas que o haviam de transportar, descobriu-se el-rei e pai, e, tendo-se descoberto e coberto outra vez, voltou para o paço, são as desumanidades do protocolo. Lá seguiu o infante sozinho para S. Vicente de. Fora, com o seu luzido acompanhamento; sem pai nem mãe, à frente o cardeal, depois a cavalo os porteiros da maça, os oficiais da casa e títulos, a seguir iam os clérigos e moços da capela, menos os cónegos, que esses foram esperar o corpo a S. Vicente, todos de tochas acesas nas mãos, e logo a guarda em duas alas, adiante os seus tenentes, e agora sim, vem aí o caixão, coberto por uma riquíssima tela encarnada, que também cobre o coche de Estado, e atrás do caixão segue o duque de Cadaval velho, por ser mordomo-mor da rainha, cuja, se tem entranhas de mãe, estará chorando o seu filho, e, por ser dela estribeiro-mor, vai também o marquês das Minas, pelas lágrimas se lhe contará o amor, não pelos títulos que a servem, e os tais panos, mais os arreios e cobertas dos machos, ficarão para os frades de S. Vicente como é antigo costume, e pela serventia dos machos, que são dos ditos frades, foram pagos doze mil réis, é um aluguer como outro, não estranhemos, que machos não são os humanos, mesmo machos sendo, e também os alugam, e tudo isto junto faz pompa, circunstância e solenidade, pelas ruas por onde o funeral passa estão em alas os soldados, mais os frades de todas as ordens, sem excepção, além dos mendicantes como donos da casa que receberá o menino morto de desmame, privilégio que os frades muito merecem, como mereceram o convento que vai ser construído na vila de Mafra, onde há menos de um ano foi enterrado um rapazito de quem não chegou a averiguar-se o nome e que levou acompanhamento completo, iam os pais, e os avós, e os tios, outros parentes, quando o infante Pedro chegar ao céu e souber destas diferenças, vai ter um grande desgosto». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

 cortesia de Caminho/JDACT

Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,