«(…) Apalpou-se sem olhar e sentiu um tecido finíssimo, idêntico aos lençóis. Pôde perceber as rosinhas bordadas na gola, as nervuras do peitilho. Sentiu também que o tecido se lhe enredava nas pernas, como se de uma camisa de noite se tratasse. Tinha a certeza de ter vestido um pijama azul: casaco e calças. Mas quando ousou abrir os olhos e levantar a roupa e espreitar para dentro da cama, viu a longa saia cor-de-rosa cheia de babados. Foi ele, pensou. Está a fazer troça de mim. Mas quando olhou para a parede, resolvida a perder o medo e a pedir-lhe satisfações, o quadro não estava lá. Então, saltou da cama num pulo e dirigiu-se à casa de banho no intuito de tomar um duche frio que lhe devolvesse a sanidade. Mas aquilo que viu só piorou a situação. Em vez da retrete que instintivamente procurou, havia um penico alto, de esmalte, com pássaros pintados. A casa de banho não era mais casa de banho mas sim um quarto de vestir com um grande guarda-fatos cheio de vestidos antigos. A um canto imperava um lavatório de cerâmica na sua armação de ferro e paisagem cor de sangue, com árvores e passarinhos. O jarro igual estava pousado no chão, cheio de água. Na prateleira da armação havia escovas com cabo, um grande sabonete ovóide, uma luva turca. Dos lados pendiam duas toalhas de linho. Havia ainda um semicúpio de zinco com a respectiva toalha. As toalhas tinham uma linda barra bordada e eram debruadas a renda de um dos lados. Lavou-se como pôde e, ao inclinar-se para a bacia, verificou que em vez do seu habitual cabelinho curto, pintado de ruivo, tinha agora uma farta cabeleira castanha, levemente ondulada, que lhe chegava ao meio das costas.
Alucinada, abriu o armário do
quarto onde, na véspera, tinha pendurado a roupa. Mas em vez do tailleur e blusa
de seda que vestira para a palestra e dos jeans, t-shirt e blaser que reservara
para viajar naquele dia, estavam dois vestidos compridos, um de seda azul e
outro branco, de cassa. Sentiu-se agoniada. Pensou em vomitar para o balde por
baixo do lavatório, fosse qual fosse o fantasma que viesse despejá-lo. A sua
roupa interior desaparecera. Por baixo da camisa de noite cor-de-rosa tinha uma
calçola pelo joelho, com um folho, do mesmo tecido e da mesma cor. Na cadeira,
uma camisa de dia, de alças, e um corpete que não chegava a ser espartilho.
Vestiu-se, isto é, na sua ideia mascarou-se, com o vestido de caça. Olhou-se
bem no espelho. Só o rosto era o mesmo. Não tinha verniz nas unhas, agora
cortadas rentes. As sobrancelhas não estavam arranjadas e algumas rugas, que já
espreitavam ao canto dos olhos, tinham desaparecido. Mas eram os mesmos olhos
azuis, sim, a mesma boca cheia, as mesmas maçãs do rosto um pouco salientes. O
que faço agora?, pensou, já disposta, por não ter alternativa, a entrar no
jogo. Confirmou o que já suspeitava: a mala de rodinhas com o resto das suas
coisas, não estava lá. O candeeiro da mesinha-de-cabeceira também não. Era, no
seu conjunto, uma partida muitíssimo bem pregada. Mas não lhe parecia que
aquelas senhoras amáveis que a tinham recebido fossem capazes de uma loucura
destas. Foi à janela e viu o mesmo muro de pedra que lhe parecera ver na véspera
e, para além dele, árvores de fruto e vinha a perder de vista. Ninguém a tinha
teletransportado para um castelo na Escócia.
Foi quando bateram à porta. Uma
voz grave de mulher com forte pronúncia do norte, insistiu: menina Margarida,
abra a porta! Que novidade é esta de se trancar? É a Lucinda, trago-lhe o pequeno-almoço.
Vá lá, está a arrefecer! Abriu. A Lucinda entrou, fardada de cinzento até aos pés,
crista, punhos e avental branco, cujo laço engomado deixava cair duas pontas
aladas até aos calcanhares. Bom-dia, menina. Pensei que estivesse doente. E faça
favor de não se trancar, porque se lhe dá o ataque a gente não lhe pode acudir.
Pousou a bandeja de prata na mesinha ali posta, certamente para esse fim, e de
onde o tabuleiro da véspera, o chá, os bolinhos caseiros haviam desaparecido. Agora
tinha uma almoçadeira de porcelana com chocolate quente, pãezinhos onde a
manteiga se derretia, duas taças com compotas diferentes, e uma grande fatia do
que parecia ser pão-de-ló. Vá, toca a comer. A menina hoje não me parece lá
muito boa. E é bom que esteja, porque vem o tal amigo do paizinho que quer
escolher noiva. As manas já estão prontas. A menina Mariana já anda aos pulos e
a menina Madalena está a ajudar a fazer um bolo para o chá. Despache-se
Margaridinha, pela sua saúde, antes que a mãezinha venha cá ralhar. Já mando a
Rosa arrumar o quarto. Quer que a penteie? Ou vai andar com essa gaforina a
receber as visitas? Quero, disse Margarida, convencida de que aquilo era um
filme onde teria de inventar as suas próprias deixas. Faz-me uma trança. Qual
trança, qual carapuça. Vou pôr-lhe um laço de cetim amarelo que fica bem com os
cabelos castanhos, tão lindos, que a menina tem. Puxo estes aqui para a frente,
bem alisadinhos com o pente e prendo-os cá atrás com a fita. Amarelo, com o
branco do vestido, fica bonito. Lucinda, que dia é hoje? Perguntou, enquanto a
criada procurava numa gaveta cheia de fitas, ganchos e plumas. Que dia é hoje?
Ora então a menina não sabe? É o quinze de Setembro. E está um calor que parece
Agosto. Quem diria que daqui a nada é Outono. De que ano, Lucinda? Está a fazer
pouco de mim? Só para ver se sabes. É o..., pois..., deixe cá ver, 1908. É
isso. Não ando sempre a pensar que ano é, mas sei, pois. É isso. É o 1908. Foi
este ano que mataram o Rei. Então Margarida percebeu que, como nos contos de
fadas, tinha dormido cem anos, e viajado, durante o sono, no sentido inverso do
tempo». In Rosa Lobato Faria, As Esquinas do Tempo, 2008, Porto Editora, 2008,
ISBN 978-972-004-181-4.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, Rosa Lobato Faria, Literatura, O Saber,