Sophia
«Eu e o meu marido estamos a jantar. Um bocado de alho-porro
fica-lhe preso na barba e move-se para cima e para baixo à medida que mastiga; parece
um insecto preso na erva. Observo-o indolentemente, pois sou uma mulher jovem e
vivo o presente de modo simples. Não morri nem renasci ainda. Ainda não morri
uma segunda vez, porque aos olhos do mundo, esta será uma segunda morte. No meu
fim está o meu princípio: a enguia enrosca-se e engole a sua própria cauda. No
princípio ainda estou viva e jovem, apesar de o meu marido estar velho. Erguemos
os nossos cálices e bebemos. Há palavras gravadas dentro do meu cálice: as esperanças da Humanidade são vidro frágil,
e por isso a vida também é breve, uma homilia áspera contida
no líquido que bebo. Cornelis arranca um pedaço de pão e molha-o na sopa.
Mastiga por um momento.
Minha querida, tenho
de falar consigo. Limpa-se ao guardanapo. Não é verdade que todos desejamos a
imortalidade nesta vida transitória? Fico petrificada, porque sei o que vai
dizer a seguir. Olho fixamente para o meu pão abandonado em cima da mesa:
abriu-se durante a cozedura e parece exibir lábios entreabertos. Estamos
casados há três anos e ainda não tive um filho. Não por falta de tentativas,
pois, no que a isto diz respeito, o meu marido ainda é um homem viril. À noite
monta-me: afasta-me as pernas e eu fico ali, como um escaravelho de pernas para
o ar, esmagado por um sapato. Ele deseja ardentemente um filho, um herdeiro que
gatinhe por este chão de mármore, que prolongue a vida desta casa grande e
vazia no Herengracht.
Mas, até ao momento,
tenho fracassado. Submeto-me naturalmente aos seus abraços, porque sou uma
esposa ciosa dos seus deveres e ser-lhe-ei grata para sempre. A vida é cruel e
ele salvou-me, assim como salvámos a nossa pátria do avanço das águas: drenámo-la
e construímos canais para a manter a salvo e evitar que se afundasse. Por isso,
amo-o. Todavia, ele surpreende-me: por isso, contratei os serviços de um pintor,
Jan van Loos, um dos artistas mais promissores de Amesterdão: naturezas-mortas
e paisagens, mas sobretudo retratos. Foi-me recomendado por Hendrick Uylenburgh
que, como sabe, é um negociante perspicaz. Rembrandt van Rijn, que chegou
recentemente de Leiden, é um dos seus protégés.
É desta maneira que me ensina, dizendo-me mais do que quero saber; mas esta
noite as palavras dele aterram silenciosamente à minha volta. O nosso retrato
vai ser pintado!
Tem trinta e seis anos, a mesma
idade que o nosso novo e corajoso século. Cornelis esvazia o cálice e enche-o
novamente: está embriagado com a visão de nós próprios imortalizados na tela.
Quando bebe cerveja fica sonolento, mas quando bebe vinho torna-se patriótico. Vivemos
na mais grandiosa das cidades, berço da nação mais grandiosa do globo. Embora esteja
só eu sentada à sua frente, fala como se se dirigisse a uma larga audiência. As
suas faces, por cima da barba amarelada, enrubescem. Não é deste modo que
Vondel descreve Amesterdão? Haverá águas
ainda não ensombrecidas pelo seu velame? Haverá mercados que ainda desconheçam os
seus produtos? Haverá ainda, sob a luz da lua, algum povo que ela desconheça?
Ela, que dita as leis a todos os oceanos?
Não espera que eu responda porque
sou apenas uma jovem mulher pouco vivida, confinada a esta casa. Trago comigo,
em redor da cintura, apenas as chaves das arcas onde está guardado o enxoval,
embora me falte abrir algo ainda mais importante. Penso no que irei trajar
aquando da pose para o retrato, por enquanto, o meu mundo resume-se a isto.
Esqueçamos os oceanos e os impérios. Maria traz uma travessa com arenques e
volta fungando para a cozinha. Tem soprado do mar uma névoa constante e ela tem
tossido todo o dia. No entanto, o seu estado de espírito não foi afectado.
Estou certa de que tem um amor secreto: trauteia na cozinha e às vezes
surpreendo-a em frente do espelho a arranjar o cabelo sob a touca. Descobrirei
o seu segredo, porque trocamos sempre confidências uma com a outra; ou, pelo
menos, até ao ponto permitido pelas circunstâncias. É a minha única confidente
desde que deixei as minhas irmãs.
O pintor vem na próxima semana. O
meu marido é um connoisseur
e a nossa casa está repleta de quadros. Na parede atrás dele está pendurada
uma tela intitulada Susannah and
the Elders: os velhos espiam a donzela nua a banhar-se. À luz do dia
consigo ver os rostos vorazes dos velhos mas, a esta hora, à luz de vela, já se
refugiaram na sombra; consigo vislumbrar apenas o seu corpo roliço e pálido por
cima da cabeça do meu marido enquanto se serve de peixe. Gosta de colecionar
coisas belas». In Deborah Moggach, A Febre das Tulipas, 1999, Edições ASA, 2017, ISBN
978-989-233-874-3.
Cortesia de EASA/JDACT
JDACT, Deborah Moggach, Literatura, Holanda, Tulipas,