«(…) Verdade, o palacete não tinha o charme de um lugar que um dia fora uma casa de família, mas fiares, imperadores, arquiduques e cabeças coroadas estiveram todos sob aquele tecto. Até Napoleão ocupara um dos quartos. Então, ele disse com orgulho: É nosso. Vocês precisam de um decorador. Já acabamos aqui? Gostaria de terminar o que eu estava explicando. O italiano gesticulou com as mãos. Ande logo. Eu quero dormir. Nós também somos o Conselho dos Dez. Assim como os originais, utilizamos inquisidores para fazer valer nossas decisões. Fez um gesto, e três homens deram um passo à frente no outro lado do salão. Assim como os originais, nosso governo é absoluto. Vocês não são o governo. Não. Somos algo completamente diferente. O florentino ainda não parecia intimidado. Vim até aqui no meio da noite porque recebi ordens dos meus associados. Não porque esteja intimidado. Trouxe esses quatro para me proteger. Portanto, talvez seus inquisidores tenham dificuldade de fazer valer alguma coisa.
Vincenti
levantou-se, empurrando a cadeira. Acho que uma coisa tem que ficar clara. Foi
contratado para realizar uma tarefa e decidiu mudar o trabalho para atender a
um propósito seu. A não ser que todos pretendam sair daqui dentro de um caixão,
acho melhor esquecermos isso e pronto. A paciência de Vincenti chegara ao
limite. Ele de facto não gostava dessa parte das suas obrigações oficiais. Fez um
gesto e os quatro homens que chegaram com o florentino o agarraram. A expressão
de convencimento se transformou em surpresa. O florentino foi desarmado
enquanto três dos homens o imobilizavam. Um inquisidor aproximou-se e, com um
rolo de fita grossa, prendeu os braços agitados do acusado atrás das costas, as
pernas e os joelhos juntos, e tapou a sua boca. Os três, então, soltaram o
florentino, que bateu com o corpo largo no tapete. Este Conselho o considera
culpado de traição à nossa Sociedade, disse Vincenti. Fez mais um gesto, e portas
duplas se abriram. Um caixão de rica madeira laqueada foi puxado sobre rodas
com a tampa aberta. O florentino arregalou os olhos quando pareceu se dar conta
do seu destino. Vincenti aproximou-se. Quinhentos anos atrás, os traidores do
Estado eram trancados em recintos acima do palácio do Doge, feitos de madeira e
chumbo, expostos às intempéries, ficaram conhecidos como as tumbas. Fez uma
pausa para permitir que suas palavras fossem absorvidas. Lugares horríveis. A
maioria dos prisioneiros morria. Você pegou nosso dinheiro enquanto, ao mesmo
tempo, tentava ganhar mais dinheiro. Balançou a cabeça. Não está certo. E, aliás,
seus associados decidiram que era o preço que pagariam para manter a paz connosco.
O florentino lutou para soltar-se com vigor renovado, os protestos abafados
pela fita sobre a boca. Um dos inquisidores levou os quatro homens que haviam
chegado com o florentino para fora da sala. O trabalho deles estava feito. Os
outros dois inquisidores ergueram o homem, que tentava resistir, e o jogaram no
caixão.
Vincenti
olhou para dentro da caixa e entendeu exactamente o que o olhar do florentino
dizia. Sem dúvida, traíra o Conselho, mas fizera apenas o que Vincenti, e não
os tais associados, ordenara. Vincenti havia mudado a tarefa, e o florentino só
compareceu diante do Conselho porque Vincenti lhe dissera, em particular, que não
se preocupasse. Só uma encenação sem importância. Tudo bem. Finja que não sabe
de nada. Tudo estará resolvido numa hora. Gordo?, repetiu Vincenti. Arrivederci.
E bateu a tampa do caixão». In Steve Berry, A Traição Veneziana, 2009,
Publicações dom Quixote, Livros d?Hoje, 2013, ISBN 978-972-203-860-7.
Cortesia domQuixote/JDACT
JDACT, Literatura, Steve Berry, Narrativa,