O Castelo de Lucretili. Junho de 1453
«(…) Claro que não fiz isso.
Lamento, fiquei bêbado como um idiota e disse a ele que poderia ir defender a
própria causa. Porque abriu a porta? Porque acreditei que seu amigo era um
homem honrado, assim como você. Agiu muito mal ao destrancar a porta, repreendeu
o irmão. Abrir a porta de seus aposentos a um homem, a um bêbado! Você não sabe
se cuidar. Meu pai tinha razão, temos de colocá-la num lugar seguro. Eu estava
segura! Estava no meu próprio quarto, no meu próprio castelo, conversando com o
amigo de meu irmão. Não deveria haver riscos, respondeu, zangada. Você não devia
ter trazido um homem desses à nossa mesa de jantar. Meu pai nunca deveria ter
acreditado que ele seria um bom marido para mim. Ela levantou-se e foi à nave
central, seguida pelo irmão. Mas, afinal, o que disse que o aborreceu tanto? Isolde
conteve um sorriso ao pensar na caçarola chocando contra a cabeça gorda do
príncipe. Deixei meus sentimentos bem claros. E nunca mais me encontrarei com
ele. Ora, isso vai ser fácil, disse Giorgio asperamente, já que nunca será
capaz de se encontrar com homem algum. Se não se casar com o príncipe Roberto,
terá de ir para a abadia. O testamento de nosso pai não lhe deixa alternativa. Isolde
parou para absorver as palavras dele e, hesitante, pôs a mão no seu braço, perguntando
como poderia convencê-lo a deixá-la livre.
Não adianta ficar assim, disse
ele, de forma rude. Os termos do testamento são claros, eu lhe disse ontem à
noite. Era o príncipe ou o convento. Agora é só o convento. Partirei em
peregrinação, propôs. Vou para longe daqui. Não partirá. Como sobreviveria,
para começar? Não consegue manter-se segura nem dentro da própria casa! Ficarei
com alguns amigos de pai, qualquer um. Posso procurar o filho do meu padrinho,
o conde da Valáquia, ou posso ir atrás do duque de Bradour... Ele estava sério.
Não pode. Sabe que não pode. Deve fazer o que o pai ordenou. Não tenho escolha,
Isolde. Deus sabe que eu faria qualquer coisa por você, mas o testamento é claro
e tenho de obedecer a meu pai, assim como você. Irmão..., não me obrigue a
isso. Ele virou-se para a parede em arco da capela e encostou a testa na pedra
fria, como se estivesse com dor de cabeça. Irmã, nada posso fazer. O príncipe
Roberto era a sua única chance de escapar da abadia. É o testamento de nosso
pai. Jurei sobre sua espada, sobre sua própria espada, que cuidaria para que
fosse cumprido. Minha irmã..., não há nada que eu possa fazer, nem você. Ele
prometeu que deixaria sua espada para mim. É minha agora, como todo o resto. Ela
pôs a mão no ombro do irmão, gentilmente. Se eu fizer um juramento de celibato,
não posso ficar aqui com você? Não me casarei com ninguém. O castelo é seu, bem
vejo. No fim, ele fez como todos os homens e favoreceu o filho em detrimento da
filha. No fim, fez como todos os grandes homens e excluiu a mulher da riqueza e
do poder. Mas, se eu morar aqui, pobre e sem poder, sem jamais ver um homem,
obediente a você..., não posso ficar? Ele negou com a cabeça. Não é minha
vontade, mas a dele. E é assim, como você mesma admite, que o mundo funciona.
Ele a criou quase como se você tivesse nascido menino, com riqueza e liberdade
demais. Mas, agora, você deve viver como uma nobre. Deveria ficar feliz, pelo
menos, com a proximidade da abadia, assim não precisará se afastar muito das
terras que sei que ama. Não foi mandada para o exílio, ele podia tê-la enviado
a qualquer lugar. Em vez disso, ficará na nossa propriedade: na abadia. Vou vê-la
de vez em quando. Levarei as novidades. Talvez depois você possa cavalgar
comigo. Ishraq poderá ir comigo? Pode levar Ishraq, pode levar todas as suas
damas, se desejar e se elas estiverem dispostas a ir. Mas esperam por você na
abadia amanhã. Terá de ir, Isolde. Terá de fazer seus votos de freira e
tornar-se abadessa. Não tem alternativa. Ele a encarou novamente e viu que
tremia como uma jovem égua forçada aos arreios pela primeira vez. É como ser
aprisionada, sussurrou. E não fiz nada de errado. Ele também tinha lágrimas nos
olhos. É como perder uma irmã. Estou sepultando um pai e perdendo uma irmã. Não
sei como será sem você por aqui.
Abadia de Lucretili. Outubro de 1453
Alguns meses depois, Luca estava
na estrada de Roma cavalgando para leste. Vestia um manto simples e uma capa
marrom-avermelhada, e cavalgava a sua mais nova aquisição. Estava acompanhado
pelo criado, Freize, um jovem de ombros largos e cara quadrada, que recobrara a
coragem quando Luca saiu do mosteiro e se voluntariara para trabalhar para o
jovem, seguindo-o aonde a missão o levasse. O abade teve suas dúvidas, mas
Freize o convenceu de que era um péssimo cozinheiro e de que seu amor pela
aventura era tão forte que serviria melhor a Deus se acompanhasse um senhor
extraordinário numa busca secreta ordenada pelo próprio papa, em vez de queimar
o bacon dos monges resignados. O abade, secretamente feliz em se desfazer do
noviço trocado pelas fadas, considerou que a perda de um criado propenso a
acidentes era um preço pequeno a pagar.
Freize montava um cavalo forte de
pernas curtas e guiava um burro carregado com os pertences. Na rectaguarda da
procissão, ia um anexo surpresa à parceria: um clérigo, o irmão Peter, que, em
cima da hora, recebeu ordem de viajar com eles e manter um registo do trabalho.
Um espião, murmurou Freize pelo canto da boca. Um espião, se é que já vi um. Pálido,
de mãos macias, com olhos castanhos e crédulos. Tem a cabeça rapada de um
monge, mas os trajes de um cavalheiro. Um espião, sem dúvida». In
Philippe Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, Colecção Ordem da
Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.
Cortesia de EGRecord/JDACT
Itália, Século XV, JDACT, Literatura, Philippa Gregory,