Com a devida vénia a Ruy Ventura e ao jornal Alto Alentejo
As Igrejas de Castelo de Vide fazem falta
«Castelo de Vide é uma terra afortunada. Ao contrário de outras localidades,
que ainda hoje lamentam os desvarios e vandalismos do passado, causadores da
destruição de tantos edifícios valiosos, a terra de Salgueiro Maia detém no
perímetro do seu concelho um património invejável seja sob que ponto de vista
for. É, ainda, uma vila venturosa pelas gentes que nela habitam. Sem os
castelo-videnses, teríamos no mesmo lugar do Alto Alentejo uma qualquer feia
povoação, sem identidade e sem brilho, abastardada por uma sucessão de
atentados urbanísticos e patrimoniais promovidos pelos seus habitantes e
autorizados pelos serviços camarários. Felizmente, temos o contrário disso tudo,
e essa realidade eleva a urbe aos olhos dos portugueses e dos estrangeiros. Entre
as pessoas que dão vida a Castelo de Vide, há cidadãos de corpo inteiro que, ao
longo do tempo, têm assumido a defesa do seu património. Se no passado não
conseguiram evitar a demolição de uma parte das suas muralhas (e, nelas, da célebre
Porta da Aramenha, proveniente da cidade romana de Ammaia), bem como de
alguns edifícios religiosos, como a importante igreja do Espírito Santo ou a
matriz antiga de Póvoa e Meadas, pode dizer-se que há uma linhagem de gente que
não tem deixado destruir peças importantes da sua identidade artística e
arquitectónica (popular ou erudita). Uns chegaram à investigação, à escrita e à
publicação (César Videira, João António Gordo, Raposo Repenicado, Diamantino
Sanches Trindade, Maria Guadalupe Alexandre, Diogo Salema Cordeiro, Jorge Rosa,
Rosário Salema Carvalho, etc.); outros, mantendo-se mais ou menos na sombra,
trabalharam de outro modo pela salvaguarda, valorização e divulgação do
património da comunidade, que é parte integrante, diga-se, do património
nacional. Nos últimos anos, merece especial relevo a actividade da associação
denominada Grupo de Amigos de Castelo de Vide, que tem aliado a defesa dos
interesses locais à edição de livros e à impressão do jornal Notícias de
Castelo de Vide, também disponível na internet sob a forma de blogue.
Se alguém pensa, por isto, que Castelo de Vide precisa de mim para liderar
a defesa do seu património, decerto tem uma visão desfocada da realidade do
concelho. Como investigador, é certo que assinei artigos na Invenire,
Revista de Bens Culturais da Igreja (editada pela Conferência Episcopal
Portuguesa) em que estudei obras de arte e tradições da vila onde nasceu Garcia
de Orta; destaquei a localidade no meu livro Santo António na Região de
Portalegre; publiquei artigos sobre as ruínas da ermida de São Paulo e
sobre a igreja de Santa Maria da Devesa (com algumas novidades históricas);
divulguei uma parte dos textos tradicionais do concelho em vários cadernos
editados com a literatura oral da Serra de São Mamede; dei destaque à literatura
castelo-vidense na volumosa antologia Poetas e Escritores da Serra de São
Mamede; e, sobretudo, investiguei a toponímia, a heráldica, a história e o
património do concelho no livro A Vide e o seu Castelo, obra hoje
esgotada, a precisar de reedição revista e muito aumentada. Tal trabalho, que
tenciono continuar (nomeadamente no doutoramento em História da Arte que me
ocupará nos próximos quatro anos), não me transforma no entanto num elemento
imprescindível na luta pela defesa do património concelhio, embora não lhe vire
a cara, ao não esquecer que uma parte dos meus antepassados nasceu nesse
município. Agradeço a honra que me foi concedida em duas publicações vindas a
lume no jornal Alto Alentejo, nas quais surjo como líder de um grupo de
pessoas de Castelo de Vide, mas não a mereço. Se manifestei o meu repúdio
público pelas intenções do pároco viti-castrense e de mais algumas pessoas em
vender a abandonada igreja de São Miguel (situada na Serra que já teve o nome
do Comandante das Milícias Celestes e principal defensor da Igreja e do povo de
Israel), limitei-me a fazer eco de uma notícia criada e difundida pelo Grupo
de Amigos de Castelo de Vide no jornal que publica. Partilhei a notícia
no facebook e comentei-a, dando o meu apoio aos castelo-videnses, estupefactos
perante um incompreensível e pouco claro ataque ao seu património medieval. É
certo que difundi a notícia e pus os meus fracos préstimos à disposição dos
defensores do património local, mas nada fiz que outros não tivessem feito. O
seu a seu dono…
Há quem defenda publicamente que as igrejas de Castelo de Vide não fazem
falta. Permito-me discordar. Fazem tanta falta quanto as muralhas de várias
épocas que envolvem a vila, quanto o castelo que lhe deu nome, quanto as antas
e outros vestígios arqueológicos que povoam o município, quanto o pelourinho
que se ergue em frente aos Paços do Concelho, quanto muitas tradições seculares
que dão identidade à urbe. Diria mesmo que, dado o seu estatuto, fazem até mais
falta. Com o que digo, não estou a estabelecer uma hierarquia, mas apenas a
dizer que uma estratégia pastoral imaginativa, dialogante e aberta já lhes
teria dado utilidade comunitária além do seu valor patrimonial, pois se não há
cultura sem culto, também não há culto sem cultura.
A igreja de São Miguel não está arruinada, como tem sido dito. Está apenas
abandonada porque a abandonaram há várias dezenas de anos, entregando-a à sua
sorte e às forças da natureza. Aconteceu o mesmo a outras ermidas
castelo-videnses, o que se lamenta. Desde que lhe retiraram as imagens aí
veneradas, não mais foi reparada, limpa ou valorizada. Mas não é uma ruína. Não
será muito difícil repará-la e dar-lhe nova vida, associando-a talvez à ermida
de Nossa Senhora da Penha, sua vizinha, que não tem espaço para lá se celebrar
a eucaristia, nem no dia da festa, ou instalando aí um agrupamento de
escuteiros ou… (os castelo-videnses saberão, e parece que a edilidade já está a
dar bons passos no sentido de não se apagar esse património). Essa igreja, já
existente no século XV, era local de encontro dos cristãos-novos na centúria de
quinhentos, tendo assim um valor memorial inalienável. Com potencial
arqueológico importante, ninguém nos garante que por debaixo da sua cal não
haja surpresas. Não deve ser vista, todavia, como algo que se possa separar da
sua envolvente, tanto próxima, onde avulta um entorno prodigioso do ponto de
vista natural e paisagístico, quanto alargada. Pergunto: não seria possível
criar uma rota do sagrado que envolvesse todos estes edifícios ainda de pé e
mesmo aqueles de que já só sobram ruínas? Ou será melhor defender o que
defendiam alguns cidadãos de Guimarães no século XIX, ao quererem demolir o
castelo da cidade porque o progresso seria levantar ali um bairro operário?» Ruy Ventura, As Igrejas de Castelo de Vide Fazem
Falta, artigo publicado no jornal AltoAlentejo, 17/06/2020, Arquivo do Norte
Alentejano.
Cortesia de JALentejo/RuyVentura/JDACT
JDACT, Património, Ruy Ventura, Cultura e Conhecimento, Castelo de Vide,