Zarita
«(…) Eu estava prestes a bater,
disse ele sem hesitação. Minha tia, intencionalmente, olhou para o corredor
mais além dele. Que descortesia da irmã que está como porteira hoje não tê-lo
conduzido pessoalmente aos meus aposentos. Eu recusei a ajuda de sua porteira,
explicou o sacerdote, e disse-lhe que encontraria sozinho o caminho para a sua
sala. Espero que não se importe. De modo algum, retrucou minha tia
agradavelmente. Entre. A irmã Maddalena levantou-se. Vou trazer uma infusão de
menta para refrescá-lo. O padre se instalou numa cadeira. Passa um dia agradável...
,conversando?, indagou-me. Minha sobrinha e eu rezamos enquanto trabalhamos,
padre, respondeu minha tia. Ah, sim, Zarita é filha de sua irmã, não é mesmo?
Posso ver a semelhança entre vocês, principalmente os olhos. Zarita é parecida
com a mãe, e diziam que nós duas éramos como irmãs gémeas. Mas diga-me, padre,
minha tia baixou o véu sobre o rosto, como andam as suas investigações? O padre
Besian franziu a testa. Os muçulmanos fugiram, e os judeus se isolaram. Como
deveriam, acrescentou. Temos sido convocados a arbitrar pequenas disputas, mas,
até agora, ninguém nos forneceu qualquer informação séria a respeito de práticas
heréticas. Alegro-me em ouvir isso. Mas eu não. Não? Não. Isso apenas significa
que há coisas profundamente ocultas. Isso não significaria que não há nada impróprio
por aqui? Tenho notado hábitos relaxados. Irmã Maddalena retornou com os copos
cheios de água quente adocicada na qual foi colocada uma infusão de folhas de
menta. O padre Besian apanhou o copo que lhe foi oferecido. Vejam, eis um
exemplo do que digo. A bandeja sobre a qual servem essas bebidas é de origem árabe
com escritos na linguagem deles. Sabem o que significa? Houve uma pausa que
durou o tempo de uma batida cardíaca. Eu não saberia dizer.
Minha tia havia falado uma
inverdade, se não uma mentira directa, certamente uma afirmação feita com a
intenção de enganar o ouvinte, e fiquei imaginando como justificaria isso a seu
confessor. Eu sabia que minha tia estudara árabe a fim de ler certos textos
para que seus pacientes pudessem beneficiar do conhecimento superior que ela
afirmava que os mouros tinham de medicina. Pode até ser alguma blasfémia
trazida para o interior das paredes de um mosteiro e que ignoram. Como minha
tia nada disse, ele ergueu seu copo. Esta bebida também é de origem moura. Minha
tia pestanejou. Creio que vai descobrir que a própria rainha bebe uma infusão
feita com folhas de menta. O padre Besian abanou a mão. Não cabe a alguém saber
o que a rainha faz ou deixa de fazer. Esses são exemplos de irregularidades
nesta cidade que me causam inquietação. Sua ordem não é reconhecida pela
igreja..., isso por si só poderia constituir uma heresia, combinada com a falta
de respeito mostrada na Santa Missa pelo criado de seu cunhado.
Minha tia levantou-se e foi até
um armário no canto da sala. De lá, tirou uma caixa, a qual abriu. Entregou ao
padre Besian o pergaminho que ela continha. Esta é a escritura do terreno deste
convento-hospital, terras que me foram concedidas pela rainha Isabel para que
eu pudesse fundar um hospital com um grupo de irmãs para cuidar dos
necessitados. A fundação de minha ordem foi feita com sua aprovação. Nossa petição
por reconhecimento, apoiada pela rainha, está no Vaticano à espera da atenção
do Santo Padre. O rosto do padre Besian se comprimiu ao ler o pergaminho. Minha
tia devolveu-o à caixa e fechou a tampa com um forte estalo. Se isso é tudo o
que consegue encontrar de errado na nossa cidade, comentou decisivamente, um
adulto com a mente de uma criança e uma freira que bebe chá de menta, receio
que possa estar escarnecendo do trabalho da Inquisição (maldita). O corpo do
sacerdote vibrou com raiva contida enquanto ele se levantava para ir embora.
Vejo essas transgressões como indícios
de delitos mais profundos. Mas sou um homem paciente e determinado e vou
descobrir o que as pessoas desejam ocultar. Houve silêncio entre mim e minha
tia enquanto a irmã Maddalena conduzia o padre Besian para fora do convento. Eu
senti medo, mas não entendi porquê. Minha tia se aproximou de mim e colocou os
lábios perto do meu ouvido. Providencie para que a sua governanta, Serafina,
sirva carne de porco no jantar de amanhã. Dei um sorriso intrigado. Meu pai não
gosta de carne de porco. Nunca é servida em nossa casa. Sabe disso. Minha tia não
retribuiu meu sorriso. Em vez disso, adoptou uma aparência muito séria e
continuou falando num tom de voz bem baixo. Ouça, Zarita. Faça o que estou
mandando. Diga a seu pai, em particular, que eu falei que isso deve acontecer.
Ele entenderá e concordará. Agora, descontraiu o rosto e segurou meu braço,
vamos caminhar um pouco no jardim e poderá colocar flores na sepultura da
mulher do mendigo. Eu sei que gosta de fazer isso. Passear pelas trilhas bem
cuidadas do jardim murado me acalmou, e passei algum tempo rezando ao lado da
sepultura que eu zelava. A caminho de casa, porém, minha paz foi despedaçada.
Fui recebida por Serafina, que veio correndo para mim enquanto me aproximava de
nossa propriedade. Ela chorava e torcia as mãos. O que houve?, perguntei-lhe. Eles
o prenderam! Os soldados da Inquisição (maldita) o levaram para ser interrogado. Quem?,
indaguei. Quem foi levado para ser interrogado? Meu sobrinho, bradou, e caiu no
choro mais uma vez. Eles prenderam Bartolomé». In Theresa Breslin, Prisioneira
da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,