Saulo
«(…) E ele vai fazer isso? Ele
deve ser maluco em pensar que alguém jogaria dinheiro fora em tal aventura! Acha
que isso não existe? Não é porque talvez não exista. O que torna a expedição
impossível é que o Mar Oceano é muito vasto para ser atravessado. Pode haver
tempestades mais violentas do que podemos imaginar, grandes remoinhos capazes
de tragar um navio de forma que nunca mais será visto, vastas extensões de água
estagnada com algas marinhas por milhares de quilómetros, onde o vento não
sopra e remos não conseguem remar. Ali um navio ficaria eternamente paralisado
por uma calmaria e sem água potável. Homens morreriam de sede, ou ficariam
loucos e se matariam uns aos outros. Sim, mas se conseguir chegar ao outro
lado... Minha voz foi falhando porque o capitão perdera interesse na conversa e
estabelecia nossa rota para o próximo porto. Acho que foi neste momento que me
ocorreu que era possível viajar não apenas por comércio, mas por aventura, e
isso talvez fosse algo que eu pudesse fazer. Pois eu começara a me apaixonar
pelo mar, e seus humores e caprichos conspiravam para me arrebatar. O enjoo que
começara a sentir ficara no passado e passei a ansiar pelo sopro do vento no
meu rosto e a visão da água tão aflitivamente azul sob o sol da manhã. Naquele
Verão descobri o quanto a água do mar podia ser morna. Os únicos banhos que eu
havia tomado tinham sido num rio gelado, e talvez não mais do que cinco ou seis
vezes em minha vida. Agora mergulhava nu do lado do barco para a cintilante
água azul-celeste e me divertia com os homens, enquanto eles espirravam água e
nadavam, depois deitava na areia branca e deixava que as ondas rastejassem sobre
meu corpo, preguiçosa e languidamente com o calor.
Adorava observar a proa da galé
repartindo as ondas enquanto seguíamos nosso curso. Com o Outono, os dias
chegavam ao fim com um céu exibindo as mais maravilhosas cores de pôr do sol,
rosa, amarelo, violeta, lavanda, índigo, carmesim. E, quando o perfurante
brilho das estrelas aparecia no obscuro azul da grande abóbada de céu sobre as nossas
cabeças, eu dormia com a canção do bate-bate da marulhante água contra os
costados da nave. Nossas cargas eram pequenas e na maioria mercadorias em
estado bruto: minério e grãos, amêndoas e óleo, goma de mástique, pedra-ume,
açafrão e sal. Navios que carregavam metais preciosos, peles ou joias eram
maiores e viajavam com escolta. Entrávamos e saíamos de portos na costa do
norte do mar Mediterrâneo, e partíamos para o Atlântico para alcançar o
movimentado porto espanhol de Cádiz, para onde navios maiores traziam
mercadorias das terras setentrionais, tais como lã da Inglaterra e peles de
animais da Islândia. Evitávamos navegar perto da África do Norte por temer os
piratas que agiam ao longo da Costa da Barbária, e por causa da guerra travada
pela rainha Isabel e o rei Fernando contra o povo muçulmano. Eles agora queriam
o Reino de Granada no sul da Espanha, que por centenas de anos fora governado
pelos mouros. Lomas achava que eles acabariam por banir completamente os muçulmanos
e os judeus, embora, no passado, os judeus os tivessem servido muito bem em
altos cargos do governo.
À medida que o tempo esfriava e
as horas com luz do dia encurtavam, o capitão me consultava mais e mais ao ler
seus mapas. Além da habilidade de ser capaz de decifrar letras, eu tinha aptidão
para aritmética e rapidamente aprendera a interpretar as cartas, usando o
almanaque e outros auxílios. Por todo o Inverno e entrando pela Primavera do
ano seguinte, aprendi os nomes das constelações e a calcular nossa posição com
base na ascendência da Estrela Polar no horizonte. Quando Panipat grunhia seu
desprazer por eu realizar tarefas mais fáceis, o capitão Cosimo ria das suas
objecções. O mestre dos remadores me olhava desconfiado e ficou ainda mais
aborrecido quando, certo dia, após atracar num porto ao sul de Cádiz, o capitão
declarou que me levaria à terra com ele enquanto realizava os seus negócios.
Panipat colocou um grilhão nos
meus tornozelos e prendeu a eles uma corrente leve. Entregou a ponta da
corrente ao capitão, que a envolveu no punho. Embora a corrente fosse fina e
bem discreta, senti-me humilhado, não estava sendo tratado melhor do que um
animal selvagem. Mas sabia que não deveria protestar. Panipat ficou de olho em
mim ao deixarmos o barco. Ele bateu o cabo do chicote violentamente na palma da
mão, como se para me lembrar qual seria o meu destino se tentasse escapar. O
capitão Cosimo girou a bengala e usou-a para me empurrar à sua frente. Acompanhados
por dois tripulantes, descemos a prancha, seguimos pelo lado do cais e através
do portão arqueado para a cidade. Visitamos o representante dos mercadores, e o
capitão fez seus negócios e encheu a bolsa. Pagou os salários dos tripulantes e
lhes deu dinheiro para a compra de provisões, então seguimos as vielas tortuosas
que levavam ao mercado e à cacofonia de sons de animais domésticos amarrados e
aos granidos de aves com deslumbrantes plumagens». In Theresa Breslin, Prisioneira
da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,