quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Panipat colocou um grilhão nos meus tornozelos e prendeu a eles uma corrente leve. Entregou a ponta da corrente ao capitão, que a envolveu no punho»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

«(…) E ele vai fazer isso? Ele deve ser maluco em pensar que alguém jogaria dinheiro fora em tal aventura! Acha que isso não existe? Não é porque talvez não exista. O que torna a expedição impossível é que o Mar Oceano é muito vasto para ser atravessado. Pode haver tempestades mais violentas do que podemos imaginar, grandes remoinhos capazes de tragar um navio de forma que nunca mais será visto, vastas extensões de água estagnada com algas marinhas por milhares de quilómetros, onde o vento não sopra e remos não conseguem remar. Ali um navio ficaria eternamente paralisado por uma calmaria e sem água potável. Homens morreriam de sede, ou ficariam loucos e se matariam uns aos outros. Sim, mas se conseguir chegar ao outro lado... Minha voz foi falhando porque o capitão perdera interesse na conversa e estabelecia nossa rota para o próximo porto. Acho que foi neste momento que me ocorreu que era possível viajar não apenas por comércio, mas por aventura, e isso talvez fosse algo que eu pudesse fazer. Pois eu começara a me apaixonar pelo mar, e seus humores e caprichos conspiravam para me arrebatar. O enjoo que começara a sentir ficara no passado e passei a ansiar pelo sopro do vento no meu rosto e a visão da água tão aflitivamente azul sob o sol da manhã. Naquele Verão descobri o quanto a água do mar podia ser morna. Os únicos banhos que eu havia tomado tinham sido num rio gelado, e talvez não mais do que cinco ou seis vezes em minha vida. Agora mergulhava nu do lado do barco para a cintilante água azul-celeste e me divertia com os homens, enquanto eles espirravam água e nadavam, depois deitava na areia branca e deixava que as ondas rastejassem sobre meu corpo, preguiçosa e languidamente com o calor.

Adorava observar a proa da galé repartindo as ondas enquanto seguíamos nosso curso. Com o Outono, os dias chegavam ao fim com um céu exibindo as mais maravilhosas cores de pôr do sol, rosa, amarelo, violeta, lavanda, índigo, carmesim. E, quando o perfurante brilho das estrelas aparecia no obscuro azul da grande abóbada de céu sobre as nossas cabeças, eu dormia com a canção do bate-bate da marulhante água contra os costados da nave. Nossas cargas eram pequenas e na maioria mercadorias em estado bruto: minério e grãos, amêndoas e óleo, goma de mástique, pedra-ume, açafrão e sal. Navios que carregavam metais preciosos, peles ou joias eram maiores e viajavam com escolta. Entrávamos e saíamos de portos na costa do norte do mar Mediterrâneo, e partíamos para o Atlântico para alcançar o movimentado porto espanhol de Cádiz, para onde navios maiores traziam mercadorias das terras setentrionais, tais como lã da Inglaterra e peles de animais da Islândia. Evitávamos navegar perto da África do Norte por temer os piratas que agiam ao longo da Costa da Barbária, e por causa da guerra travada pela rainha Isabel e o rei Fernando contra o povo muçulmano. Eles agora queriam o Reino de Granada no sul da Espanha, que por centenas de anos fora governado pelos mouros. Lomas achava que eles acabariam por banir completamente os muçulmanos e os judeus, embora, no passado, os judeus os tivessem servido muito bem em altos cargos do governo.

À medida que o tempo esfriava e as horas com luz do dia encurtavam, o capitão me consultava mais e mais ao ler seus mapas. Além da habilidade de ser capaz de decifrar letras, eu tinha aptidão para aritmética e rapidamente aprendera a interpretar as cartas, usando o almanaque e outros auxílios. Por todo o Inverno e entrando pela Primavera do ano seguinte, aprendi os nomes das constelações e a calcular nossa posição com base na ascendência da Estrela Polar no horizonte. Quando Panipat grunhia seu desprazer por eu realizar tarefas mais fáceis, o capitão Cosimo ria das suas objecções. O mestre dos remadores me olhava desconfiado e ficou ainda mais aborrecido quando, certo dia, após atracar num porto ao sul de Cádiz, o capitão declarou que me levaria à terra com ele enquanto realizava os seus negócios.

Panipat colocou um grilhão nos meus tornozelos e prendeu a eles uma corrente leve. Entregou a ponta da corrente ao capitão, que a envolveu no punho. Embora a corrente fosse fina e bem discreta, senti-me humilhado, não estava sendo tratado melhor do que um animal selvagem. Mas sabia que não deveria protestar. Panipat ficou de olho em mim ao deixarmos o barco. Ele bateu o cabo do chicote violentamente na palma da mão, como se para me lembrar qual seria o meu destino se tentasse escapar. O capitão Cosimo girou a bengala e usou-a para me empurrar à sua frente. Acompanhados por dois tripulantes, descemos a prancha, seguimos pelo lado do cais e através do portão arqueado para a cidade. Visitamos o representante dos mercadores, e o capitão fez seus negócios e encheu a bolsa. Pagou os salários dos tripulantes e lhes deu dinheiro para a compra de provisões, então seguimos as vielas tortuosas que levavam ao mercado e à cacofonia de sons de animais domésticos amarrados e aos granidos de aves com deslumbrantes plumagens». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,