Saulo
«(…) O que podemos fazer?,
perguntei ao capitão. Não conseguiremos lutar contra eles em terra muito mais
do que conseguiríamos no mar. Nós vamos encalhar o barco, revelou-me. Ele agora
estava ocupado enrolando os mapas e recolhendo seu material de navegação. O
carpinteiro-cozinheiro jogava seus apetrechos num saco enquanto o resto da
tripulação juntava a caixa de pederneiras, arpão, lanças e outras peças vitais
do equipamento. Encha a garrafa de cada homem o mais depressa que puder. Vá!,
gritou o capitão no meu rosto, enquanto eu o encarava estupidamente. Apressei-me
a cumprir sua ordem. Panipat já estava ajoelhado ao lado dos escravos acorrentados,
usando a chave na sua cintura para abrir os grilhões. Vislumbrei uma extensão
de terra branca. Então o barco bateu nela fortemente e fui arremessado à
frente. Fora! Fora!, berrou Panipat, e os homens saltaram para fora e
arrastaram o barco pela areia o máximo que puderam. O navio pirata estava
distante apenas poucas centenas de metros.
Cada um por si!, bradou o
capitão. Corram! Corram! Ele estendeu a mão para alcançar a magnífica jaqueta
azul-pavão, e eu me inclinei para apanhá-la e lhe entregar. Era pesada. Ele
correria menos com aquilo às costas. Sua vaidade devia ser enorme, pensei,
levando-o a querer manter o casaco consigo mesmo que isso pudesse lhe custar a
vida. Tome, falou. Você é mais rápido do que eu. Colocou os mapas num comprido
estojo cilíndrico feito de couro endurecido, oleado para ser à prova d’água, e
entregou-me para carregá-lo. Abrigue-se primeiro, disse-me, depois corra para o
ponto mais alto da ilha. Os remadores apanharam as posses que mantinham debaixo
dos bancos, cada marinheiro com seu saco de bugigangas contendo os objectos
pessoais. Eu nada tinha, além do estojo com os mapas, mas sabia que ele era
importante. E, de um modo infantil, senti-me contente por aquilo ter sido
confiado a mim. Nós nos espalhamos, correndo para longe do barco em direcção à
densa folhagem do interior da ilha.
Eu acenderei uma fogueira na
praia quando eles tiverem ido embora, gritou o capitão Cosimo para os seus
homens. Vocês verão a fumaça e saberão que poderão sair. Rezem para que não haja
canibais aqui. Ouvi um dos homens dizer ao nos embrenharmos entre as árvores. Ou,
se houver, vamos rezar para que não estejam com fome. O alívio por terem
escapado da linha de fogo do inimigo levava-os a gracejar. O capitão me seguiu,
golpeando cada lado à frente com sua bengala de bambu. Enquanto os homens
corriam em todas as direcções para se proteger o melhor possível entre árvores
e arbustos, o capitão me mandava seguir para terreno alto. Pelejando sob o peso
da jaqueta, o capitão avançou acima com dificuldade até se encontrar a alguma
distância da praia e a uma boa altura. Vamos descobrir o que eles pretendem. O
capitão tomou posição atrás de uma árvore e me passou sua luneta. O que vê?,
perguntou-me.
Focalizei o navio pirata, parado
pouco antes dos recifes que protegiam a baía onde tínhamos encalhado. Eles
lançaram um esquife com alguns homens armados a bordo. Será que vão destruir
nosso barco?, indaguei, com medo de que pudéssemos ficar isolados e abandonados
para morrer de fome. O capitão sacudiu a cabeça. Não creio. Essa tripulação não
é do tipo que se dedica à guerra política ou religiosa. É uma questão de comércio;
o modo como eles fazem negócio. Roubam e vendem. Olhou ele mesmo pela luneta e
então a devolveu. Tomara que eles queiram apenas nossa água. Nossa carga é de
pouca utilidade para eles. Olhou de relance para o céu. A noite está quase
caindo. Não vão perder tempo nem gastar energia ou munição para nos caçar aqui
nesta vegetação rasteira, pois poderíamos matar alguns deles antes que
conseguissem capturar qualquer um de nós. Se tivéssemos sido capturados no mar,
a história teria um fim diferente. Eles levariam os homens mais aptos como
escravos e, provavelmente, colocariam o barco à deriva com o resto de nós
dentro. Observei os piratas irem à praia e vasculharem a nossa nau. Pareciam marinheiros
comuns, e comentei isso com o capitão. Ele deu uma gargalhada. O que você
esperava? Que tivessem 3 metros de altura e barbas longas, carregando uma
espada em cada mão e uma faca entre os dentes? A maioria de nós que está no mar
de vez em quando faz uma pirataria. Soltou outra gargalhada ao ver meus olhos
se arregalarem. Até mesmo navios de linha, portando bandeiras dos seus países,
assegurou-me. Não hesitam em parar e, usando um ou outro pretexto, tomar
mercadorias da sua preferência. Apertou mais em volta do corpo a jaqueta de pavão
e alisou a manga. Em alguma ocasião, eu mesmo devo ter feito isso. E sorriu de
modo astuto». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera
Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,