Zarita
«(…) O padre Besian chegara à
parte do sermão em que exortava a congregação a ser vigilante e a informar a
ele e aos seus agentes da Inquisição (maldita) qualquer delito que precisassem.
Devem informar qualquer caso que possa ser um acto de heresia. Ainda se a pessoa
de que se suspeita seja um irmão, uma irmã, um pai ou um filho. Sim, estrondeou,
seja uma filha que suspeite de um pai, ou uma mãe do seu próprio filho! Eu os
condenarei à dor do pecado mortal. Arriscarão a danação de sua alma imortal se
permanecerem calados. Minha tia inspirou fundo. Arrisquei um olhar de relance
para o pai e vi a sua mandíbula se apertar e o rosto ficar sombrio. Ao lado
encontravam-se os ajudantes de nossa residência. Estavam sentados num banco,
empertigados, numa atitude de apreensão. Todos, excepto Bartolomé, que sempre
se portava da mesma maneira na igreja: sorria, brincava com os dedos e cantava
baixinho para si mesmo. Mas, quando o sermão durou mais do que o normal, para
temor de todos, ele começou a fazer ruídos de estouros com a boca.
O padre Besian ergueu a voz para
cobrir a interrupção.
Bartolomé igualou-se ao desafio.
Encheu as bochechas de ar e, antes que Serafina conseguisse impedi-lo, bateu
nelas com ambas as mãos, causando o som de peido mais alto ouvido por algum
tempo na igreja. Uma risadinha formou-se na minha garganta. Fingi tossir. Junto
a mim, senti o corpo de minha tia se sacudir e notei que ela também contivera
uma risada. As feições do padre Besian foram tomadas pela raiva. Fez uma pausa
e olhou do púlpito abaixo para Bartolomé, que alegremente acenou para ele.
Bartolomé costumava acenar para o padre Andrés quando este fazia a sua
pregação, e ele acenava de volta. Bartolomé não via motivo para que esse padre fosse
diferente do outro. O padre Besian encurtou o sermão e desceu a escada do púlpito.
Encerrado o serviço religioso, saímos
para o ar fresco, onde respiramos mais facilmente. Serafina segurou Bartolomé
pela mão e saiu caminhando rapidamente, seguida pelo resto dos nossos criados.
Notei que os outros habitantes fizeram o mesmo; após as cerimónias na igreja,
eles normalmente se demoravam por ali para conversar com parentes e amigos e se
actualizar com as notícias, mas, dessa vez, saíram apressadamente. Quem era
aquele idiota que interrompeu meu sermão? O padre Besian aproximou-se de nós,
obviamente ainda furioso pela afronta à sua dignidade. O pai abriu a boca para
responder, mas tia Beatriz interrompeu delicadamente. Ele é de facto um idiota,
mui reverendo padre. Uma alma simplória. Foi um sábio por ter percebido isso. Há
aqueles, menos perceptivos, que teriam ficado incomodados com tal má educação. O
padre Besian dirigiu olhos astutos para minha tia. Você é...? Minha tia curvou
a cabeça. Beatriz Marzena, freira do convento-hospital dirigido pelas Irmãs de Compaixão.
Como freira, não deveria estar no interior dos muros do seu mosteiro? Sou irmã
da primeira esposa de dom Vicente e, como tal, sou parte da sua família. Ele me
informou do desejo do reverendo de que todos os membros da família comparecessem
à sua pregação hoje. O padre Besian inspeccionou minha tia e então disse: As
Irmãs de Compaixão? Tenho viajado por muitas partes da Espanha, fazendo a obra
da Santa Inquisição (maldita), e nunca ouvi
falar de tal ordem.
Eu mesma a fundei, informou-lhe
minha tia. Ainda não fomos reconhecidas formalmente pelo nosso Santo Padre, o
papa. O padre Besian inspirou rapidamente. De facto?, disse. Foi a vez de meu
pai interromper. Preciso cuidar de alguns assuntos, dirigiu-se ele ao padre. Se
não precisa de mim no momento... O padre Besian abanou a mão num gesto de
dispensa. Minha tia aproveitou a oportunidade para se afastar um pouco. E falou
para meu pai: Será que Zarita me pode acompanhar até ao hospital para uma
visita? Meu pai concordou com a cabeça, com certo alívio, pensei». In
Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014,
ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,