sexta-feira, 6 de maio de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Os companheiros foram ficando pelo caminho, mortos, desaparecidos, para maior pungência do seu remordimento. Dois deles, na travessia do Danúbio coalhado. Haviam confiado na espessura do gelo…»

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O Sapateiro…

«(…) Não morrestes vós, meu rei, como covarde. Vossas mãos não foram atadas como cativo, vossos pés não trouxeram braga, não vos feriram por detrás como quem fugia, não dissestes sou rei, não me mateis. Estimastes mais a honra que a vida. Deste-la em sacrifício pela Fé, em serviço de Deus, em remédio de vosso povo..., ainda que tínheis condição autorizada, porém com grandes desculpas. Rei de menino criado com fumos de imperador de Marrocos, levantado com autoridade de muitas mentiras entonadas com tantas letras e tanta nobreza, não era muito que vos levassem aonde vimos, e sobretudo nenhuma culpa tendes, meu rei, porque vossos avessos, se o eram, correndo a idade puderam ter emenda. Pois quem vos matou, meu formoso? Matou-vos o bispo, matou-vos o clérigo, matou-vos o povo, matei-vos eu, matámos-vos todos quantos somos, pois entre nós não houve um tanoeiro que vos tivesse mão pela rédea, como já se fez a outro rei deste reino... Vamos embora, vamos disse Savachão, tomando Telo do braço e abrindo caminho por entre o povo em direcção à porta.

O Sósia

Palavras de sonho para história de sonho, disse o arcebispo de Espálato levantando-se e dando largas passadas pela sala. Pretendeis que eu acredite nisso? Não me acudira a ideia. Está a ouvir-me há tanto tempo e só agora caio em mim e me dou conta de que não sei se ele acredita em mim e pensará que sou um mistificador. Que outra coisa posso esperar senão a dúvida? Que resposta poderei dar?... - A verdade,  respondia, é como um raio de luz coado por um vidro facetado: estilha-se em feixes e cores... e, com aguda insistência, atalhou o cónego, pode lançar fogo ao universo. Uma história do outro mundo!, teimava o prelado. Sente-se, Eminência, e escute o restante. O arcebispo sentou-se. O peregrino retomou o seu relato: Resolvi-me a correr mundo com os meus companheiros. E os teus companheiros onde estão? Escutasse, logo saberia. Não souberam morrer nos areais de Alcácer e procuravam agora a glória ou a morte algures. Na Flandres, nas províncias do Norte, ajudaram os maltrapilhos de Guilherme de Orange contra a dominação de Filipe segundo, ainda estava na memória do povo, quando chegaram, as crueldades do duque de Alba, esse mesmo de que lhe vinham então ao conhecimento notícias de que invadira Portugal, vencera em Alcântara seu primo dom António aclamado rei em Santarém, colocara pela força, dispensando a argumentação jurídica, o rei de Espanha no trono português. Raiva, paixão e impotência, quando tudo desabava e ele assistira atónito à imprevista cena em que Baltasar Gérard disparara a sua pistola no peito de Taciturno. Saíram, então, Europa dentro, na Áustria lutaram contra os Otomanos e foram subindo pelos Balcãs, até que um dia... Os companheiros foram ficando pelo caminho, mortos, desaparecidos, para maior pungência do seu remordimento. Dois deles, na travessia do Danúbio coalhado. Haviam confiado na espessura do gelo, iam lá à frente e avançaram confiantes, não avisados de que era Abril e já a brancura das montanhas por toda a parte se abria em sulcos de riachos. Com o peso e o bater dos cascos das montadas, a superfície escorregadia cedeu e eles foram engolidos pela torrente subterrânea, que nunca mais ninguém os viu e nem um ai os pôde salvar... Outros dois tinham sucumbido em combate algures na Síria... Ficara Telo. Um dia, em Damasco, aonde entraram disfarçados numa caravana de mercadores de seda, saíra o pajem da tenda em busca de mantimentos. Escorreram horas e, como não voltasse, ele fora pela cidade com um indiano amigo à procura do companheiro. Na praça pública balouçavam três corpos pendurados das forcas. O pajem era um deles. Manifestara a vontade de saber que se tinha passado, de resgatar-lhe o corpo para o sepultar cristãmente. Mas o indiano, agarrando-lhe do braço, arrastou-o dali e obrigou-o a sair, se não quisesse sofrer a mesma sorte...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,