O Sapateiro…
«(…)
Não morrestes vós, meu rei, como covarde. Vossas mãos não foram atadas como
cativo, vossos pés não trouxeram braga, não vos feriram por detrás como quem
fugia, não dissestes sou rei, não me mateis. Estimastes mais a honra que a
vida. Deste-la em sacrifício pela Fé, em serviço de Deus, em remédio de vosso
povo..., ainda que tínheis condição autorizada, porém com grandes desculpas.
Rei de menino criado com fumos de imperador de Marrocos, levantado com
autoridade de muitas mentiras entonadas com tantas letras e tanta nobreza, não
era muito que vos levassem aonde vimos, e sobretudo nenhuma culpa tendes, meu
rei, porque vossos avessos, se o eram, correndo a idade puderam ter emenda.
Pois quem vos matou, meu formoso? Matou-vos o bispo, matou-vos o clérigo,
matou-vos o povo, matei-vos eu, matámos-vos todos quantos somos, pois entre nós
não houve um tanoeiro que vos tivesse mão pela rédea, como já se fez a outro
rei deste reino... Vamos embora, vamos disse Savachão, tomando Telo do
braço e abrindo caminho por entre o povo em direcção à porta.
O
Sósia
Palavras
de sonho para história de sonho, disse o arcebispo de Espálato levantando-se e
dando largas passadas pela sala. Pretendeis que eu acredite nisso? Não me
acudira a ideia. Está a ouvir-me há tanto tempo e só agora caio em mim e me dou
conta de que não sei se ele acredita em mim e pensará que sou um mistificador.
Que outra coisa posso esperar senão a dúvida? Que resposta poderei dar?... - A
verdade, respondia, é como um raio de
luz coado por um vidro facetado: estilha-se em feixes e cores... e, com aguda
insistência, atalhou o cónego, pode lançar fogo ao universo. Uma história do
outro mundo!, teimava o prelado. Sente-se, Eminência, e escute o restante. O
arcebispo sentou-se. O peregrino retomou o seu relato: Resolvi-me a correr
mundo com os meus companheiros. E os teus companheiros onde estão? Escutasse,
logo saberia. Não souberam morrer nos areais de Alcácer e procuravam agora a
glória ou a morte algures. Na Flandres, nas províncias do Norte, ajudaram os
maltrapilhos de Guilherme de Orange contra a dominação de Filipe segundo, ainda
estava na memória do povo, quando chegaram, as crueldades do duque de Alba,
esse mesmo de que lhe vinham então ao conhecimento notícias de que invadira
Portugal, vencera em Alcântara seu primo dom António aclamado rei em Santarém,
colocara pela força, dispensando a argumentação jurídica, o rei de Espanha no
trono português. Raiva, paixão e impotência, quando tudo desabava e ele
assistira atónito à imprevista cena em que Baltasar Gérard disparara a sua
pistola no peito de Taciturno. Saíram, então, Europa dentro, na Áustria lutaram
contra os Otomanos e foram subindo pelos Balcãs, até que um dia... Os
companheiros foram ficando pelo caminho, mortos, desaparecidos, para maior
pungência do seu remordimento. Dois deles, na travessia do Danúbio coalhado. Haviam
confiado na espessura do gelo, iam lá à frente e avançaram confiantes, não
avisados de que era Abril e já a brancura das montanhas por toda a parte se
abria em sulcos de riachos. Com o peso e o bater dos cascos das montadas, a superfície
escorregadia cedeu e eles foram engolidos pela torrente subterrânea, que nunca
mais ninguém os viu e nem um ai os pôde salvar... Outros dois tinham sucumbido
em combate algures na Síria... Ficara Telo. Um dia, em Damasco, aonde entraram
disfarçados numa caravana de mercadores de seda, saíra o pajem da tenda em
busca de mantimentos. Escorreram horas e, como não voltasse, ele fora pela
cidade com um indiano amigo à procura do companheiro. Na praça pública balouçavam
três corpos pendurados das forcas. O pajem era um deles. Manifestara a vontade
de saber que se tinha passado, de resgatar-lhe o corpo para o sepultar
cristãmente. Mas o indiano, agarrando-lhe do braço, arrastou-o dali e obrigou-o
a sair, se não quisesse sofrer a mesma sorte...» In Fernando Campos, A Ponte dos
suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,