«...E, como os castelhanos souberam que o rei juntava as suas gentes, como dissemos, armaram logo galés em Sevilha e vieram à costa de Portugal e entraram logo pelo rio de Lisboa e chegaram até o Restelo e tomaram naus que ali estavam carregadas de mercadorias e levaram--nas. E o almirante de Portugal, que era então em Lisboa, quando o viu, armou muito à pressa outras galés e foi atrás deles e alcançou-os dentro no mar e ali pelejaram com ele e venceu-os e tomou-lhe as galés e assim mesmo as naus, e trouxe tudo ao porto de Lisboa. Crónica de Portugal de 1419, Universidade de Aveiro, 1998.
Segundo a
denominada Crónica de Portugal de 1419, no Verão de 1296, durante a guerra com
Castela, Fernando IV ordenou que a armada castelhana, composta por um número
indeterminado de galés, atacasse a costa portuguesa. Esta armada subiu a foz do
Tejo e tomou de assalto algumas naus portuguesas que se encontravam no porto de
Restelo, carregadas de mercadorias, numa típica operação de corso sobre navios
mercantes portugueses. Tudo corria bem aos castelhanos, no entanto, o Almirante
português, sobre o qual não conhecemos o nome, estava em Lisboa. Rapidamente,
mandou armar as galés portuguesas e partiu em perseguição da armada castelhana.
Provavelmente porque as naus portuguesas apresadas atrasavam a velocidade dos
castelhanos, as velozes galés portuguesas conseguiram alcançar a armada
invasora e ocorreu um combate naval, cuja vitória sorriu aos portugueses. O
anónimo Almirante regressou, vitorioso, a Lisboa, apresando por sua vez as
galés que tinham partido de Sevilha. A narrativa da Crónica de 1419 deste
interessante episódio dá a entender que o sucesso do Almirante de Portugal
residiu sobretudo na sua capacidade em reagir à operação corso castelhana, mas
não nos oferece detalhes sobre o que possibilitou esta prontidão da marinha
portuguesa.
O factor preponderante,
não referido pelo cronista, que permitiu esta impressionante celeridade do
Almirante é a existência, no porto da cidade de Lisboa, de uma muito bem
preparada estrutura de apoio à marinha, as tercenas régias. Esta comunicação
tentará dar a conhecer esta estrutura, que é ainda pouco conhecida pela
historiografia portuguesa, e tentaremos sobretudo assinalar o seu relevante
papel na história da marinha.
Dois anos
antes de os castelhanos terem entrado na foz do Tejo, no episódio aqui referido,
dom Dinis tinha reestruturado de forma indelével toda a Ribeira de Lisboa, construindo
uma nova muralha, duas ruas adjacentes a essa estrutura defensiva, a Judiaria Pequena, e muito
provavelmente, terá, também na mesma altura, restruturado as tercenas régias da
cidade. Antes de penetrarmos no cerne das
questões relativas às tercenas de Lisboa, atentemos a algumas questões
fundamentais. Qual a funcionalidade das tercenas medievais? Onde estavam
e a quem serviam as principais tercenas na Europa Ocidental? As tercenas
medievais eram locais onde se guardavam as galés, embarcações que foram,
por excelência, o navio de combate mais relevante desde a antiguidade até ao
século XVI, mantendo-se em algumas marinhas europeias até ao início do século
XIX, nomeadamente na marinha russa.
A
palavra tercenas, provém do árabe dar al-sina, oficina, que
significava o local, pertencente ao estado, dedicado à construção naval.
Do árabe, o étimo penetrou nas línguas romances, como no português taracenas, no castelhano atarazanas, no italiano darsena e
arsenale, e no francês arsenal. Em todas estas línguas
manteve-se uma ligação às actividades navais, mas nem sempre o
significado se associou à manutenção de galés. Em Portugal e em Espanha
a palavra tercenas ganhou, durante o século XVI, o sentido de armazém,
perdendo-se gradualmente o vínculo com a construção naval.
Este facto deve-se às alterações sofridas nas prioridades da construção
naval ocorridas, no século XVI, sobretudo devido à navegação atlântica
que beneficiou naus e caravelas, em detrimento das galés, embarcações
que se adaptavam melhor à navegação e ao combate naval no Mar Mediterrâneo.
Na
época medieval, as galés eram embarcações da maior importância quer a nível
militar quer a nível comercial e até social, pois não se limitavam ao combate
naval, sendo também utilizadas para transportar mercadorias e pessoas,
destacando-se o transporte de peregrinos para a Terra Santa». In Manuel Fialho Silva e Nuno Fonseca, As
Tercenas Régias de Lisboa: dom Dinis a dom Fernando, O Mar como
Futuro de Portugal, Academia de Marinha, Lisboa, 2019, ISBN- 978-972-781-145-8.
Cortesia de AcademiadaMarinha/JDACT
JDACT, Manuel Fialho Silva, Nuno Fonseca, Cultura e Conhecimento, Armada,