segunda-feira, 16 de maio de 2022

Contos do Antigo Testamento. Deana Barroqueiro. «A caravana era numerosa e deslocava-se lentamente para Ocidente, deixando a idade para trás e seguindo pelos caminhos familiares das antigas pastagens…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

 Os Cuidados de Abraão

«(…) E o sonho repete-se?, interrompeu o sacerdote. Muitas vezes, mais nos últimos tempos: E é sempre o mesmo? Com pequenas diferenças. O vidente meditou longamente e disse: Também no teu sonho o oráculo fala claro pela voz do deus que se denomina a si mesmo El-Chadai, o Altíssimo. O arco-íris é a ponte entre o céu e a terra, assim tu és o mediador entre El-Chadai e a tua tribo. Vais fazer uma grande viagem, não só pelo mundo mas também dentro de ti mesmo, porque a montanha é símbolo de purificação e aperfeiçoamento. O rebanho representa os teus seguidores ou todos os nascidos da tua semente, pois o cajado que o menino te entrega e aponta para Ocidente confere-te a autoridade e a dignidade de um chefe, confirmadas pela águia que indicia riqueza e poder. Curvando-se diante do suplicante, o sacerdote acrescentou com humildade: Abraão, foste abençoado pelos deuses. Vai e cumpre o teu destino! Não sejas negligente nos cuidados com a tua casa, recomendou Tare a Sarai, na despedida. - Rogarei aos deuses que te ajudem para em breve me dares um neto. Envia-me notícias por viajantes ou comerciantes que venham para Harran. Sarai prometeu fazê-lo. Então Tare dirigiu-se ao filho: A tua vida vai ser a de um pastor nómade, errando pelo mundo. Não pretendo pôr em dúvida a sabedoria dos videntes, mas nunca ninguém ouviu falar do deus El-Chadai que quer ser adorado como único e verdadeiro! Esperemos que essa ideia blasfema não faça cair sobre a tua cabeça a ira e o castigo de todos os outros deuses. Abraão não respondeu, a fim de evitar nova disputa no momento da despedida e o pai prosseguiu com as suas queixas: Preferia que Lot ficasse a viver comigo, mas não quero desobedecer aos oráculos do Zigurate e ser amaldiçoado. Se o menino do sonho é Lot, como tu dizes, e quer ir contigo, não serei eu a impedi-lo. Ide, com a minha bênção! Abraão abandonou finalmente a casa paterna, levando consigo Sarai, o sobrinho Lot, alguns parentes e amigos, assim como todos os bens que possuía e os escravos por ele adquiridos em Harran.

A caravana era numerosa e deslocava-se lentamente para Ocidente, deixando a idade para trás e seguindo pelos caminhos familiares das antigas pastagens, adiando o medo do desconhecido e de um futuro incerto. Ao anoitecer, depois de armarem as tendas do acampamento, comeram junto das fogueiras, beberam o sumo das suas uvas, mas ninguém cantou, pois todos traziam um peso no coração pela mágoa e a saudade daquilo que deixavam (e tão cedo não voltariam a ver) em troca de uma vaga promessa de um futuro melhor. Sobre as peles de carneiro que lhes serviam de leito, no espaço exíguo da tenda, Sarai exibia a sua esplêndida nudez aos olhos do marido, abrindo o corpo como um fruto suculento ao toque dos seus dedos. E Abraão sentia na curva dos seios, na concavidade macia do ventre, o arrepio da pele de Sarai sob a sua mão, respondendo com um desejo igual ao seu desejo, crescendo dentro dele como o pulsar desordenado de um coração. Beijou-lhe a pele dourada, prendendo entre os lábios os mamilos rosados, até os sentir endurecer e inchar sob a língua e vibrar de anseio como o seu próprio ventre. Quando finalmente se fundiu no corpo da mulher, vergando-a com o seu peso e a sua fúria, Sarai gritou, gemeu e suspirou, libertando sem pejo os sons de prazer que há longos anos sufocava na garganta. Durante muito tempo Abraão guiou a tribo através de terras inóspitas, por vezes desérticas, montando e desmontando as tendas do acampamento, atardando-se um pouco mais nos melhores terrenos para apascentar o gado, sem que El-Chadai lhe mostrasse por qualquer sinal a terra prometida. As promessas do deus tardavam em cumprir-se, as murmurações de descontentamento dos familiares, amigos e servos aumentavam de tom e chegavam-lhe aos ouvidos. Sarai, que andava sempre de mau humor e cansada, continuava estéril e, por fim, também ele começou a deixar-se invadir pelo desânimo e a pensar se o sonho profético não teria sido obra de qualquer demónio malévolo para o fazer cair num terrível logro.

Por isso, quando avistou as férteis terras de Canaã quase duvidou do que os seus olhos viam e cobiçou-as como jamais havia desejado uma coisa na sua vida. Animou a tribo a seguir até ao lugar dos carvalhos de More, perto da cidade de Siquém, na amena planície situada entre os montes de Ebal e Garizim. Vendo a beleza do lugar, Abraão sentiu mais do que ouviu a voz do seu Deus dizer-lhe: Darei esta terra à tua descendência e vendo como a sua gente estava exausta, a ponto de se revoltar, recusando-se a ir mais longe, disse-lhes: Rejubilai! Esta é a terra prometida por El-Chadai. Ergamos aqui um altar ao Todo-Poderoso, pois Ele nos concedeu esta terra. Todos rejubilaram e um altar foi erguido em honra do Deus único de Abraão. Nessa noite, no acampamento, depois de montarem as tendas, sacrificaram oito borregos a El-Chadai, cantaram e dançaram como há muito tempo não faziam, aspergindo-se com o sangue do holocausto e o vinho, reanimando o prazer dos sentidos nos cultos ancestrais». In Deana Barroqueiro, Contos Eróticos do Antigo Testamento, 2003, Planeta Editora, 2018, ISBN 978-989-777-143-9.

Cortesia de PanetaE/JDACT

JDACT, Deana Barroqueiro, Religião, Literatura,