domingo, 15 de maio de 2022

Deana Barroqueiro. Contos do Antigo Testamento. «Os músicos silenciaram os instrumentos e os sacerdotes acercaram-se da ara do sacrifício. Lugal-apindu, o adivinho, tomou a cabeça do animal pelos cornos, puxando-a para trás...»

Cortesia de wikipedia e jdact

Os Cuidados de Abraão

«(…) Sentiu o desejo invadi-lo como uma onda, o coração bater acelerado e o sangue pulsar nas veias, quente como fogo, trazendo finalmente a vida e a seiva a um corpo há muito adormecido. Tomou Sarai com a força dos primeiros tempos, quando recebera no leito a virgem quase criança que o pai lhe entregara e o deslumbrara com sua beleza. Para seu espanto, ao penetrar o corpo da mulher sentiu a mesma resistência, como se o véu da virgindade se tivesse de novo cerrado e quando Sarai o recebeu dentro de si, gemendo e suspirando com a mesma intensidade da noite dos esponsais, Abraão deixou seu corpo abrir-se como um dique ao impulso das sensações e escondeu o rosto nos seios da mulher sufocando um grito de agonia. O zigurate erguia-se no meio da cidade, sobre uma enorme plataforma, com uma elevação de cerca de quatro metros, formando um átrio ou praça, com vários templos secundários e outros edifícios. Atravessando o átrio, chegava-se a uma nova plataforma, ainda mais elevada, sustentando a torre sagrada, com mais de cem metros de altura e dividida em três andares. Os dois primeiros, de forma quadrada, rasgavam-se em terraços abertos, plantados de árvores e flores que lhes davam o aspecto de jardins suspensos, de belíssimo efeito. Três lances de escadas de oitenta degraus convergiam do térreo para a porta monumental do primeiro andar e continuavam até ao último, onde se erguia o pequeno templo e por elas desfilavam as procissões de sacerdotes e sacerdotisas, nos seus trajes coloridos de festa, carregados de ofertas que iam depositar no altar do deus tutelar. Na Casa do Segredo, as ervas de cheiro ardiam nos incensários e, diante da família de Tare e de outros fiéis, os sacerdotes davam início às cerimônias do sacrifício do carneiro, entregue por Sarai no dia anterior, para lerem nas suas entranhas os augúrios do deus. O animal, de cornos untados com óleos sagrados, jazia amarrado sobre a ara, balindo de medo. Ao som das harpas, dos tamboris e das flautas dos músicos do Zigurate, os três sacerdotes depuseram no altar as oblações trazidas por Sarai e fizeram as libações aos deuses. Em seguida, ajoelharam-se diante do altar e, virando as cabeças para trás de si, lançaram um esconjuro contra os demónios e espíritos maléficos, para não prejudicarem a cerimónia com sua presença funesta. Liam em tabuinhas de argila o texto gravado na graciosa escrita cuneiforme do Templo, como uma cantilena alternada, terminando num coro a três vozes: Esconjuração: Demónios assassinos, bruxos enganadores que sujais o céu, a terra e as águas, que vos ergueis como o vento para matar os homens no deserto e secar o ventre das mulheres, Marduk, Senhor do Céu e da Terra, vos há-de perseguir com castigos terríveis para vos fazer sofrer como vós nos fazeis sofrer! Glória a Marduk, protetor dos homens!

Os músicos silenciaram os instrumentos e os sacerdotes acercaram-se da ara do sacrifício. Lugal-apindu, o adivinho, tomou a cabeça do animal pelos cornos, puxando-a para trás e expondo-lhe o pescoço revestido de sedoso pêlo branco, Ginil-Marduk, o esconjurador, segurou o vaso para recolher o sangue e Adda-Kalla, o purificador, cortou-lhe a garganta com a faca ritual. Enquanto o sangue corria, os sacerdotes prostraram-se diante da imagem do deus e iniciaram um salmo laudatório do suplicante, de modo a justificar o favor e as benesses que Marduk lhe iria conceder: Nunca Abraão ofendeu os deuses, ou foi acusado de mentir. Jamais desprezou pai e mãe ou semeou a discórdia entre pai e filho, entre o irmão e seu irmão. Marduk, concede-lhe o teu favor! Nunca Abraão vendeu animais doentes ou roubou no peso da sua carne, nem disse não em vez de sim, nem sim em vez de não. Marduk, concede-lhe o teu favor! Nunca Abraão entrou de má fé na casa do seu vizinho, não roubou nem fez correr o sangue do seu vizinho, jamais desejou a mulher do seu vizinho. Marduk, concede-lhe o teu favor! Abraão é um homem justo e piedoso Merecedor da protecção divina. Marduk, indica-lhe o caminho!» In Deana Barroqueiro, Contos Eróticos do Antigo Testamento, 2003, Planeta Editora, 2018, ISBN 978-989-777-143-9.

 Cortesia de PanetaE/JDACT

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