O Sósia
«(…)
Sozinho com a sua dor e o seu remorso, acabou por decidir desaparecer para
sempre. Levara então uma vida recolhida, de penitência, junto de um velho
eremita, numa tebaida do Sinai. Paisagem sem marcas, sem indicadores de
precedências, mando, riqueza, gruta sem trono fendida na rocha da montanha,
duas árvores e a magra horta na sobrevivência de fonte avara, cascalho estéril
só de víboras e lagartos rastejado, céu agreste sem adejo de asas, a solidão perene.
Alheado de tudo, pensara poder apagar o passado e abafar o peso da alma,
esvaziar a memória. O pulsar do nascer e pôr do Sol, da noite e do dia, das
horas sem acontecimentos, adormentavam-no, deixou de sentir a meada dos anos
que se enfiavam no esquecimento. Não fosse aquele moer escondido que lhe
latejava e pungia não sabia onde de si, dir-se-ia que estava morto.
Certa
vez, o eremita, tendo-o encontrado sentado num morro, o olhar vago fitando o
horizonte, disse-lhe: Deixaste de rezar? Que se passa contigo? Tens andado
triste e agora, vê tu, estão húmidos os teus olhos. Pegou-lhe da mão, obrigou-o
a descer dali e a caminhar a seu lado. Vem. Não queres desabafar? Sebastião
calava-se. Verdade que quase já não sabia falar, por via do constante silêncio.
O eremita insistiu: É como se te ouvisse em confissão e sentou-se numa pedra, à
sombra de um sicómoro. Ajoelhasse-se-lhe aos pés, fazia-lhe sinal... Foi uma
longa e comovida confissão, que o eremita escutava de olhos fechados para os
não abrir de espanto. No fim, disse-lhe: Pecaste. Contra Deus e contra o teu
povo. Sabes que a realeza vem de Deus? Acenou que sim. Vou dar-te a única
penitência possível. Regressa, rei. Cumpre o teu dever e o teu destino. Retoma
o governo do teu reino. Desceram ao tugúrio onde costumavam pousar. O eremita
foi a um canto e pegou numa pequena arca que o peregrino lhe dera a guardar e
continha a riqueza acumulada pelos companheiros e de que se despojara: Toma.
Recupera a tua qualidade, o teu estado. Há tanto tempo que renunciei a isso!
Não será agora... Há vinte anos que vives em pecado. É urgente remediares o mal
feito. Não podes dilatar mais. Pecado é ser rei. Não saberia já governar. Pelo
contrário. Abatido o orgulho, amansados os arremessos juvenis, adquirido mais
fundo conhecimento da vida, serás agora um rei sábio e justo. Prouvera a Deus
que tivesses razão. ...Deus para com quem estás em falta grave. Não és um
ungido? E quem me aceitaria agora? Será esse o teu combate. Se te deres a
conhecer, verás que se te ajoelharão aos pés. Não quero que ninguém se me
ajoelhe aos pés. Nunca mais. São meus iguais.
Enganas-te.
Realeza vem de Deus. São teus sujeitos. Reneguei vinte anos da minha vida.
Penitenciei-me de meus erros. Queres que renegue outros vinte anos? Assim é preciso,
senão... ... senão?... ... não te poderei dar a absolvição. Olhou desolado,
indeciso, Sebastião: Inferno foi a minha vida. Não faças que o seja também a
eternidade. Decidiu-se enfim: Aceitarás vir comigo, como meu confessor e
conselheiro? Subiram a Alexandria, onde embarcaram numa nau de Génova que no
porto estava de partida e em breve velejavam ao largo a caminho de Cândia. Meu
Deus! Uma noite que o vento desabrido uivava lá fora e os surbiões do mar
balançavam perigosamente o barco, o velho eremitão, que dormia a meu lado
envolto numa manta, estendeu o braço a procurar-me no escuro. Que é?,
perguntei. Tens medo? Não me respondeu. A mão dele agarrava-me convulsa e, de súbito,
deslassou e ali ficou sossegada. Soergui-me e aquela mão descaiu para o soalho.
Que tens? Estás doente? Não se mexia e não lhe sentia o respirar. Chamei por
alguém. Um passageiro que dormia ali ao pé acordou. Acendemos a candeia. O
velho tinha os olhos abertos para a noite e a boca torcida num esgar de dor. Na
manhã seguinte, no convés, numa aberta da tempestade, o corpo dele, embrulhado
numa serapilheira e com uma pesada pedra atada aos pés, foi lançado ao mar. O
mestre não permitiu que assistíssemos, por causa do perigo, que o vento era
muito e a nau varrida por vagas alterosas.
Apenas
pudemos espreitar pela portinhola das escadas e rezar breve oração que o vento
nos veio arrancar dos lábios. Era mais um pai que de mim se partia antes que eu
renascesse... Eram fins de Dezembro de noventa e sete. Dobavam os dias entre mar
e céu, passavam ao largo de Cândia, bordejavam o Sul de Itália e aportavam a
Messina, onde ele desembarcara em cata de frei Raimundo Marchetti,
intermediário, soubera-o em tempos pelos companheiros, de cartas secretas
trocadas com amigos do reino de Portugal». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,