sexta-feira, 3 de junho de 2011

David Mourão-Ferreira. Na poesia davidiana o sujeito não ama porque existe, mas para que exista: «Um Amor Feliz, um cântico de amor e de paixão erótica; uma sátira política a certa nova sociedade portuguesa; um romance do romance em que se vêem acareados o narrador e o autor; um ajuste de contas comigo mesmo»

(1927-1996)
Lisboa
Cortesia de gatopreto 

«David Mourão-Ferreira foi escritor, poeta, ficcionista, tradutor, dramaturgo, ensaísta, cronista, crítico literário, conferencista, professor. Licenciou-se em Filologia Românica com a tese «Três Coordenadas na Poesia de Sá de Miranda». Integrou os corpos redactoriais das revistas Seara Nova e Graal (1956-1957). Teve a seu cargo a rubrica de crítica de poesia no Diário Popular (1954-1957). A partir desse ano exerceu funções docentes na Faculdade de Letras como assistente, tendo desenvolvido um excepcional trabalho de organização e regência da recém-criada cadeira de Teoria da Literatura, onde desenvolve estudos pioneiros, entre nós, sobre o new criticism. Em 1963 o seu contrato foi rescindido, vindo a ser novamente reconduzido a partir de 1970, leccionando Literatura Portuguesa e Francesa, tendo-lhe sido concedido, nos últimos anos de vida, o estatuto de Professor Catedrático Convidado.
O seu magistério marcou sucessivas gerações de estudantes, muitos dos quais se contam hoje entre as mais prestigiadas figuras da universidade portuguesa e do ensaísmo literário.

Desempenhou as funções de Secretário Geral da Sociedade Portuguesa de Autores (1965-1974), dirigiu o diário A Capital (1974-1975). Exerceu em três governos o cargo de Secretário de Estado da Cultura (1976-1979), foi vice-presidente da Association Internationale des Critiques Littéraires (1984-1992), presidente da Associação Portuguesa de Escritores (1984-1986) e do Pen Club Português (1991).
Foi director do Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian (1981-1996), bem como da revista Colóquio-Letras (1984-1996) propriedade da mesma instituição. Sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa (onde sucedeu a Vitorino Nemésio na cadeira nº 23). Membro titular da Académie Européenne de Paris, viria também a ser agraciado com as mais prestigiosas condecorações de Portugal, do Brasil e da França.
O nome de David Mourão-Ferreira ficaria também ligado ao de Amália Rodrigues que interpretou cerca de duas dezenas dos seus poemas.

Cortesia de porentremontesevales 

Como autor, David Mourão-Ferreira publica os seus primeiros artigos em 1942, no jornal Gente Moça, orgão dos estudantes do Colégio Moderno. As primeiras poesias viriam à luz nas prestigiadas páginas da Seara Nova, em 1945. Todavia, é pelo teatro que o seu nome começa a aparecer com alguma regularidade nos jornais tendo colaborado como autor e actor entre 1948 e 1951, sob a direcção de Gino Saviotti, no Teatro-Estúdio do Salitre, o qual constituiu, sob a bandeira do «essencialismo», o mais inovador movimento de Teatro Experimental dos Anos Quarenta, vendo aí encenados o poema dramático Isolda e a comédia Contrabando. Ainda neste ano funda, com António Manuel Couto Viana e Luís de Macedo, as folhas de poesia Távola Redonda, em cujas edições daria à estampa o seu primeiro livro de poesia, «A Secreta Viagem».
David Mourão-Ferreira foi um dos mais fecundos teorizadores da Távola Redonda defendendo o equilíbrio, a coerência e a proporção entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas, procurando conciliar os valores da tradição e da modernidade, revalorizando o lirismo, recusando a imediatez da inspiração e o aproveitamento da poesia para fins utilitaristas, demarcando-se do neo-realismo. Este ideário ver-se-ia plasmado na sua futura Obra, a qual, do ponto de vista técnico, representa a feliz aliança da força criadora e da construção rigorosa, sendo geralmente considerado como detentor da melhor oficina poética da sua geração.
Até à publicação de Um Amor Feliz, em 1986, David Mourão-Ferreira insistia em dizer que tinha consciência de que a sua Obra não teria um vasto público, mas que, em contrapartida, possuía leitores fiéis. Este romance viria indiscutivelmente aumentar-lhe o número desses leitores, continuando a ser objecto de sucessivas reedições. No dia seguinte à conclusão do romance, escreve:
  • «Um Amor Feliz: um cântico de amor e de paixão erótica; uma sátira política a certa nova sociedade portuguesa; um romance do romance em que se vêem acareados o narrador e o autor; um ajuste de contas comigo mesmo».
Artur Ramos realizou a partir deste romance uma série televisiva de quatro episódios, apresentada pela RTP em 1990. Anteriormente, de duas das quatro narrativas de Gaivotas em Terra tinham sido extraídas duas longas metragens: Fado Corrido (1964) por Jorge Brum do Canto e Sem Sombra de Pecado (1983) por José Fonseca e Costa.

Olga Sinclair
Cortesia de gatopingado 

Atentando nas sucessivas reedições da sua poesia, em diversas edições, nomeadamente nas recolhas poéticas, obedecendo a criteriosas reordenações poemáticas em círculos (Lira de Bolso, As Lições do Fogo), ou em ciclos (Sonetos do Cativo), jogando com a simbologia dos números quatro, sete e nove, de clara reminiscência pitagórica, cabalística ou dantesca. O ritmo, a musicalidade, a mestria das rimas assonantes, o superior domínio da metáfora e da aliteração, coadjuvadas pela antítese, ou mesmo pelo paradoxismo conferem uma personalidade singular à poesia davidiana, de perfeito recorte clássico.
A obra davidiana edifica-se sobre um complexo sistema de vasos comunicantes, orquestrados pela memória interna da obra, em contraponto de harmonizações sinfónicas ou diafónicas. Com efeito, os elementos itinerantes constituem um dos aspectos mais interessantes da implícita ou explícita rede comunicante, como é, nomeadamente, o caso das obras poética e ficcional Os Quatro Cantos do Tempo e As Quatro Estações, ou do poema intitulado «Romance das Mulheres de Lisboa no Regresso das Praias», cujo primeiro verso:
  • «Em terra, tantas gaivotas!».
Inverte e subverte o título do seu primeiro volume de ficção narrativa, considerado como de novelas, mas que resultou de um trabalho de reconstrução de um anterior romance, razão por que certas personagens transitam de umas narrativas para as outras, em completa subversão da linearidade temporal do primitivo texto.
Parafraseando um conhecido poema, de Matura Idade, «E por Vezes», (justamente seleccionado como símbolo davidiano para a antologia Rosa do Mundo-2001 Poemas para o Futuro), a angústia torna-se obsidiante imagem de fundo, que traz para o primeiro plano um sujeito que se vê através do olhar feminino e que, por vezes, se encontra e que, por vezes, se perde. Na poesia davidiana o sujeito não ama porque existe, mas para que exista. E existe para sentir, por vezes, o prazer de se dissolver e ciclicamente renascer. As formas de diluição no mar – água primordial, por vezes metáfora da mãe e memória do tempo antes do tempo, ou as formas de diluição em terra — evasão, viagem, mudança — serão ainda uma outra forma de perdição e renascimento de quem se procura procurando, por vezes ganhando e, por vezes, perdendo ao jogo da vida. Condição trágica de quem ironicamente fica preso à busca da liberdade, como um Ícaro condenado aos trabalhos de Sísifo:
  • «há-de tudo prender-se aereamente solto», lemos na «Ars Poetica», inserta em Do Tempo ao Coração.
A comunidade literária soube reconhecer o seu valor atribuindo-lhe onze prémios literários:
  • três de Poesia,
  • dois de Conto e Novela,
  • quatro de Romance,
  • um de Teatro e outro de Ensaio.
As obras de David Mourão-Ferreira encontram-se traduzidas nas principais Línguas Europeias». In Teresa Martins Marques.


Cortesia de Centro Virtual Camões/JDACT