sábado, 4 de junho de 2011

Florbela Espanca: Parte II. «A Vida é uma taça que se deve beber com sofreguidão. De tal modo que em "Prince Charmant" (soneto dedicado a Raul Proença, seu contemporâneo) são já os velhos fantasmas que retornam, desde as tardes que se morrem voluptuosas até à procura do ser eleito que se não encontra nunca. Essa procura do príncipe encantado dilui-se na "Charneca Alentejana" e a poetisa é a esfinge que olha a planície enorme».

Cortesia de entalpiapoetica

Em «O Nosso Mundo», Florbela erege um autêntico hino à vida e ao eros, original na sua poesia, tendo em conta o pessimismo que a caracteriza vulgarmente:

A vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?…
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?…
O mundo, Amor?… As nossas bocas juntas!…

A Vida é uma taça que se deve beber com sofreguidão. De tal modo que em «Prince Charmant» são já os velhos fantasmas que retornam, desde as tardes que se morrem voluptuosas até à procura do ser eleito que se não encontra nunca. Essa procura do príncipe encantado dilui-se na «Charneca Alentejana» e a poetisa é a esfinge que olha «a planície enorme».

Embalo em mim um sonho vão, miragem:
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço de paisagem!

Os amantes fundem-se na paisagem, fazem parte intrínseca dela, ou então, como no poema «Tarde Demais», quando finalmente o ser adorado regressa, já a poetisa se encontra morta:

E há cem anos que eu fui nova e linda!…
E a minha boca morta grita ainda:
“Porque chegaste tarde, ó meu Amor?…

Cortesia de spleenbored 

Mas este Livro de Soror Saudade apresenta outros traços igualmente interessantes. Imagens de um Alentejo que se prende à voz dos «sinos e das noras». As «verbenas» que se morrem silenciosamente e um franciscanismo muito angélico desde o simples apelo aos poetas e aos irmãos até ao chamamento mais forte da vida, do vento e do sol:

Trago na boca o coração dos cravos!
Boémios, vagabundos, e poetas,
Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!

Charneca em Flor é o livro publicado postumamente onde se concentram os poemas mais complexos de Florbela. Iniciemos um percurso por «Versos de Orgulho»:

O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém!
Porque o meu reino fica para Além!
Porque trago no olhar os vastos céus,
E os oiros e os clarões são todos meus!
Porque Eu sou Eu e porque Eu sou alguém!

Neste entrecho o eu é um território inexpugnável, imenso, mediúnico, solitário porque único. Voltamos ao ego como centro de todas as problemáticas, de todos os dilemas. A insistência no Infinito, num horizonte sem fim, é o rasgar de limites para um eu que se pretende ilimitado. Também a interrogação sobre a morte é de uma grande lucidez:

O que há depois? Depois?… O azul dos céus?
Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?

A resposta é de um pessimismo muito florbeliano: tudo será melhor para além da morte. Mas o erotismo é outro dos traços permanentes da poesia de Florbela. Charneca em Flor representa a consagração do eros subtil e suave, onde as mãos, a boca e o estreitar dos corpos se arriscam e se ousam:

Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Ou então de um modo mais incisivo:

As tuas mãos tacteiam-se a tremer...
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço
É como um jasmineiro em alvoroço
É o brio de sol, de aroma, de prazer!

Cortesia de laurapoesias 

Em Florbela a marca do amor é também a de um donjuanismo onde a influência de um Mário de Sá-Carneiro se faz sentir, um pouco na ambiência do poeta de Orpheu:

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... Além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente?...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Neste entrecho o amor torna-se ele próprio subversor. Não interessa o objecto amado, mas o acto de amar. De um franciscanismo ingénuo passa-se a uma atitude radical onde se torna indiferente quem se ama, mas o acto de amar. Num outro poema, «Ambiciosa», reverte-se para o homem/ Deus:

O amor dum homem? - Terra tão pisada!
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem! - Quando eu sonho o amor dum deus!

Se era indiferente o objecto amado num soneto anterior, neste excerto o amor não pode ser mais humano, mais divino. Esta divinização prende-se com o enaltecimento do próprio eu. O ego é uma entidade complexa que tanto se deixa envolver, segundo a expressão de José Régio, num donjuanismo psicológicoamar este, aquele ou aqueloutro – num cortejar sem fim, como passa por uma sensualidade muito à flor da pele.
Se em Livro de Mágoas ainda se notava a nítida filiação em António Nobre, num apelo à Mágoa, à Dor, à atitude chorada, à medida que caminhamos na sua poesia, esta torna-se mais natural e pessoal, com uma carga erótica impressiva, num paganismo onde se mistura religiosismo e amor eterno. Como por exemplo:

Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gosto das minhas mãos tontas de amor!

Sensualidade que é o grande traço desta poesia. Se não observemos ainda este excerto:

Ah, fixar o efémero! Esse instante
Em que o teu beijo sôfrego de amante
Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro.

A poesia de Florbela é de uma grande expressividade dramática, possui uma carga emocional que a torna diferente da poesia sua contemporânea. Daí que tenhamos escolhido esta poesia como paradigma de um tempo e de uma ambiência mental feminina, embora perdêssemos de vista porventura outras expressões literárias não tão perfeitas, mas mais triviais na sua resolução. Contudo, as linhas gerais estão traçadas. Os anos 30 e 40 seriam anos mais frutuosos: Maria Archer, Irene Lisboa, Maria Lamas na prosa. E outros tantos nomes na poesia. Mas dificilmente com a qualidade de Florbela». In Cecília Barreira, Instituto Camões.

Cortesia do Centro Virtual Camões/JDACT