sábado, 4 de fevereiro de 2012

Cartas Portuguesas. Soror Mariana Alcoforado. «Aliás, não deixaria de ser bem infeliz se me amasses apenas porque eu te amo, pois tudo quisera dever apenas à tua própria inclinação. Mas encontro-me tão longe disso, que há seis meses já que não recebo de ti uma só carta!»

A minha religião e a minha honra, faço-as consistir unicamente
em te amar, já que a amar-te comecei
Ilustração de José Ruy
Cortesia de peuropaamerica

Segunda Carta
«Parece-me que faço a maior afronta do mundo aos sentimentos do meu coração quando procuro dar-tos a conhecer escrevendo-os. Como eu seria feliz se pudesses avaliar bem a intensidade deles pela violência dos teus! Mas, nesse aspecto, não devo confiar em ti e não posso deixar de te dizer, com força aliás bem menor do que a que sinto, que não deverias maltratar-me deste modo, com um esquecimento que me leva ao desespero e que é mesmo uma vergonha para ti. E bem justo é que, ao menos, suportes que me lamente das desgraças que bem previra quando te vi tomar a resolução de me deixares.
Reconheço que me enganei ao julgar que procederias de melhor fé do que é costume, porque o excesso do meu amor me punha, ao que parece, acima de toda a espécie de suspeitas, e que merecia maior fidelidade do que é costume encontrar. Mas a tua disposição para me atraiçoar acaba por levar a melhor sobre a justiça que deves a quanto fiz por ti.

Aliás, não deixaria de ser bem infeliz se me amasses apenas porque eu te amo, pois tudo quisera dever apenas à tua própria inclinação. Mas encontro-me tão longe disso, que há seis meses já que não recebo de ti uma só carta! Atribuo toda esta desgraça à cegueira com que me abandonei a dedicar-me a ti. Pois não devia eu prever que os meus prazeres acabariam antes que acabasse o meu amor? Podia eu esperar que ficasses para sempre em Portugal e que renunciasses à tua fortuna e à tua pátria para só pensares em mim?
As minhas dores já não podem ter consolo e a lembrança das alegrias passadas enche-me de desespero. Pois quê? Serão então inúteis todos os meus desejos? E não hei-de tornar a ver-te no meu quarto com todo o ardor e impetuosidade que me manifestavas?

Mas, ai de mim! Estou enganada! Por de mais sei eu como todas as emoções que me enchiam o pensamento e o coração em ti eram determinadas apenas por alguns prazeres e acabavam tão depressa como eles! Seria preciso que nesses momentos, demasiado felizes, eu apelasse para a razão a fim de moderar o terrível excesso das minhas delícias e me anunciar tudo o que agora estou a sofrer... Mas eu entregava-me inteiramente a ti e não estava em condições de pensar naquilo que teria podido envenenar a minha alegria e impedir-me de gozar plenamente dos testemunhos ardentes da tua paixão. Era-me demasiado agradável sentir que estava contigo para poder pensar que um dia te afastarias de mim.

Uma obra de arte ou de literatura, ainda quando muito perfeita,
 não passa duma cópia da vida; as Cartas são a própria vida
Ilustração de José Ruy
Cortesia de peuropaamerica

Lembro-me, no entanto, de algumas vezes te haver dito que me farias infeliz. Mas esses receios em breve se dissipavam, e eu toda me comprazia em tos sacrificar e em me abandonar ao encantamento e à má-fé dos teus protestos. Bem claramente vejo qual seria o remédio para todos os meus males e em breve me libertaria deles se deixasse de te amar. Mas, ai de mim!, que terrível remédio! Não! Antes quero sofrer ainda mais do que esquecer--te... Infeliz que sou! Dependerá isso de mim?
Não posso acusar-me de ter desejado, nem que fosse só por um momento, deixar de te amar! Mais digno de compaixão és tu do que eu, e vale mais sofrer tudo o que eu sofro do que gozar os lânguidos prazeres que te dão as tuas amantes de França. Não invejo a tua indiferença. Tenho pena de ti: desafio-te a que de todo me esqueças! Posso-me gabar de ter conseguido que, sem mim, apenas consigas ter prazeres imperfeitos. Sou mais feliz do que tu, pois a minha vida é mais plena.

Nomearam-me, ainda há pouco, porteira deste convento. Todas as pessoas que me falam julgam que estou louca: não sei o que lhes respondo, e é preciso que as religiosas sejam tão insensatas como eu para me terem julgado capaz de qualquer trabalho.
Ah! Como invejo a felicidade do Manuel e do Francisco! Porque não hei-de estar sempre contigo como eles estão? Ter-te-ia, acompanhado e, decerto, que havia de te servir de melhor mente! Nada mais desejo no mundo senão ver-te!

Ilustração de José Ruy
Cortesia de peuropaamerica

Lembra-te, ao menos, de mim! Já me contento com a tua lembrança, mas não me atrevo a verificar se a conservas. Quando te via todos os dias, não limitava as minhas esperanças a que te lembrasses de mim... Mas ensinaste-me bem quanto é preciso que me sujeite a tudo o que quiseres! E, no entanto, não me arrependo de te haver adorado e sinto-me bem feliz por me teres seduzido! A tua ausência rigorosa, e talvez eterna, em nada diminui a veemência do meu amor. Quero que todos o saibam, e disso não faço mistério, que estou encantada por ter feito por ti tudo quanto fiz contra toda a espécie de decoro. A minha religião e a minha honra, faço-as consistir unicamente em te amar loucamente por toda a minha vida, já que a amar-te comecei!
Não é para te obrigar a escreveres-me que digo todas estas coisas. Oh!, não te violentes! De ti não quero nada senão o que espontaneamente vier e recuso todos os testemunhos de amor que constrangido me desses. Comprazer-me-ia em desculpar-te, só porque talvez tu te sintas bem em não ter o incómodo de me escrever, e sinto uma profunda disposição para te perdoar todas as faltas que cometeres.

Um oficial francês teve a caridade de me falar de ti esta manhã durante mais de três horas. Disse-me ele que a paz da França estava feita. Se assim é, não poderias vir ver-me e levar-me para França? Mas eu não o mereço! Faze o que te aprouver: o meu amor já não depende do modo como me trates.
Desde que partiste, não tive um único momento de saúde e o meu único prazer consiste em murmurar o teu nome mil vezes ao dia!
Algumas religiosas, que conhecem o estado deplorável em que me puseste, falam-me muitas vezes de ti. Saio o menos que me é possível do meu quarto, onde vieste tantas vezes, e olho sem cessar o teu retrato, que me é mil vezes mais caro do que a vida. É ele que me dá alguma alegria; mas provoca-me também um grande sofrimento, quando penso que talvez nunca mais te volte a ver. E porque há-de ser possível que nunca mais te veja? Ter-me-ás abandonado para sempre?

Estou desesperada! A tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao acabar esta carta. Adeus, adeus! Tem compaixão de mim!». In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa de 1669, Europa América, 1974.

Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/
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