domingo, 19 de fevereiro de 2012

Feliciano Falcão. Memória Viva. Portalegre: «A questão, a questão é mais vasta e não se compadece com arranjos parcos. Para um corpo chagado e tão anémico, emolientes, remendos e paliativos de superfície, todos postos a brilhar como fachada, que deixam íntegro o núcleo estagnativo, mórbido e letal, nunca foram remédios salutares»

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De Médico a Curandeiro em Terras Medievais
«Do ilustre conterrâneo, Feliciano Falcão, publicou o jornal “A República”, de 27 de Novembro de 1945, uma crónica interessante e exacta, sob o título acima mencionado, acerca dos meios que são facultados aos médicos que, por necessidades imperiosas da vida, têm de exercer a sua profissão nas aldeias e também sobre a forma como pode ser prestada a assistência médica em tais povoações.
Crónica dura, mas real, bem vinca o esforço titânico do médico, no meio em que os mais elementares princípios de higiene e profilaxia não existem, por deficiência da organização. O depoimento do destino médico é claro e insofismável e, estamos certos, contribuirá em muito para a reforma que terá de ser feita sobre assistência médica, nas povoações sem recursos e distantes dos meios hospitalares.

Porque é necessário divulgar as deficientes condições actualmente verificadas, com toda a nossa concordância, transcrevemos parte da sua brilhante crónica, lamentando apenas que a falta de espaço nos impeça a publicação integral:
  • [...] Para tarefa tão gigantesca, ficam só ao João Semana, em esquema pungente, que é o esqueleto de uma realidade negra, o tonendoscópio para, por veredas e azinhagas num burro lazarento, com, uma que outra vez, a amenidade do ‘cross-country’ e o alpinismo descobrir a doença no alquebrado corpo do aldeão, e as papas de linhaça como tratamento barato, por insuficiência da Organização Estatal e por mor da magra bolsa do doente.
Que a diagnose fina e uma terapêutica racional e o alicerce da profilaxia (sonhos idos...) vão sendo coisas inatingíveis e do domínio da utopia.

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Esta é também uma pequena história do médico da aldeia, que vai de provação em provação, até precipitar-se na maior:
  • ‘a de, após ter-lhe sido cerceado o conforto e a cultura e limitado o fisiologismo gástrico, e o dos seus, não poder chegar - para fruição íntima, necessidade criada, e como dádiva imperativa à comunidade, à seiva pura da Medicina verdadeira, porque o amparo é flébil, e tudo se pantaniza’.
Mas... as casas do povo, neste binómio médico-camponês, não têm impulso decisivo, dir-se-á? Para os encarniçados que se contentam com palavras, que são expressão de uma evidência límpida, alguns números poderão servir: na aldeia onde exercíamos clínica, o inquérito às condições de vida, para efeitos do racionamento, mostrou que o agregado rural estava incluído nos grupos dos que ganhavam por mês entre 0 - 150$00 e 150$00 - 300$00. Indigência e roçar de indigência...
A casa do povo dava de subsídios ao trabalhador:
  • a) -Por invalidez: 2$50 por dia. É este o arrimo pata a velhice...
  • b) - Na doença: 2$00 por dia. Se a doença se prolongava além de dois meses, era-lhe cortado o subsídio, ficando a pedir por portas...
  • c) - Por nascimento de filhos: 20$00. Estes 20$00 que a jovem mãe ia receber com o rosado pimpolho ao colo, que ao fim de meses seria outro, amarelinho e raquítico - voltavam sistematicamente à Casa do Povo para pagar as cotas em atraso. Saíam por um lado e entravam por outro...
  • d) - Farmacêutico: 50% do custo da medicação para o trabalhador doente e nada para a mulher e para os filhos. Quantas vezes assistimos a verdadeiros dramas, com esta limitação de meios tão radical para atacar o morbo!
  • e) - Surgia um tuberculoso e queria-se mandar para o sanatório. Quando aparecia a vaga, após meses e meses, já o doente estava no cemitério. Mas surgiam outros na casa a ocupar o lugar e as coisas repetiam-se com a mesma terapêutica fúnebre.

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Não é o salário calamitoso do trabalhador, não é o professor primário (outra generosa vítima da aldeia, apertando o cinto das calças), com a Escola tateante, por um lado, e despovoada, por outro, e crianças com barrigas vazias, como podem encher a escola? -, nem o clínico sem meios para exercer a sua acção que resolvem o problema angustioso. A questão, a questão é mais vasta e não se compadece com arranjos parcos. Para um corpo chagado e tão anémico, emolientes, remendos e paliativos de superfície, todos postos a brilhar como fachada, que deixam íntegro o núcleo estagnativo, mórbido e letal, nunca foram remédios salutares.
A via justa, a transfusão, a medida drástica, radical, elevar o baixíssimo nível de vida das populações rurais e nesta economia folgada articular, em engrenagem unitária, a Pedagogia e a Medicina actualizadas, não a perseguiram aqueles organismos. Não estava nos seus intentos.
E só assim os camponeses teriam um lugar ao sol. E o João Semana e o Mestre-Escola redimidos, cônscios e amparados, lhes levariam o seu trabalho fecundo. "República, nº5417,27-II-1945, pp. 4 e 5"». In Feliciano Falcão, Memória Viva, coordenação de António Ventura, Edições Colibri, CM de Portalegre, 2003.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT