domingo, 5 de fevereiro de 2012

Prosa Memorialista de seiscentos. António J. Saraiva e Óscar Lopes. «… seguidos cada qual de um título de comédia espanhola que lhe faz a caricatura; Francisco Manuel de Melo é caracterizado pelo título da comédia “Lances de Amor y Fortuna”, o que parece confirmar a tradição linhagista segundo a qual a sua prisão tem qualquer relação com aventuras amorosas»

Pintura de Nicolas Lancret
Cortesia de artclon

«A principal fonte de informação sobre este período é um diário particular referente aos acontecimentos decorridos entre 1662 e 1680, intitulado, “Monstruosidades do Tempo e da Fortuna”, de que ficaram vários manuscritos, um deles editado em 1888, e que tem sido atribuído com verosimilhança ao beneditino de Entre Douro e Minho, Frei Alexandre da Paixão. O ponto de vista deste diário é o de um moralista muito conservador, antijudaico, favorável a D. Pedro e à alta aristocracia. Mas a obra contém informações valiosas, graças a certo e novo gosto de registar efemérides, muito característico da época barroca e ao qual se devem obras tão notáveis como as “Memórias” de Saint-Simon ou o “Diário” de Samuel Pepys. A título de exemplo, e pelo seu extraordinário interesse para a história do teatro em Portugal, citemos as referências contidas em “Monstruosidades” às «cartas por títulos e comédias» e uma lista, elaborada por acinte nitidamente anti-nobiliárquico, em que figuram 117 nomes da aristocracia, ou designações colectivas de grupos dirigentes do País, seguidos cada qual de um título de comédia espanhola que lhe faz a caricatura; assim, Francisco Manuel de Melo é caracterizado pelo título da comédia “Lances de Amor y Fortuna”, o que parece confirmar a tradição linhagista segundo a qual a sua prisão tem qualquer relação com aventuras amorosas.

Entre as obras de memórias da época filipina salienta-se a “Fastigímia” ou “Fastigínía” do jurisconsulto ‘Tomé Pinheiro da Veiga’ (c. 1570-1656), diário de uma estada do autor em Valhadolid em 1605, mas com inserção de comentários e acrescentos indubitavelmente posteriores, obra que correu em numerosas cópias manuscritas. O autor dedica a maior parte do texto à descrição minuciosa de cerimónias e festejos áulicos e à transcrição da picante esgrima de galanteios que travou com damas espanholas, cuja desenvoltura e liberdade o surpreenderam e deleitaram, em contraste com a «tirania que em Portugal se usa com as filhas e as mulheres». Bom observador humorístico, Pinheiro da Veiga sabe insinuar, com humor, uma visão crítica da espaventosa corte de Filipe II (III de Espanha), do rei, do duque de Lerma e outras personagens, de certos costumes castelhanos e portugueses, das exibições teatrais do culto religioso, como procissões de tocheiros e milhares de disciplinantes, sermões «em que sucedem farsas solenes», etc.

Pintura de Nicolas Lancret
Cortesia de artclon

Em certos pontos, como no gosto da reportagem concreta, da minúcia significativa, no interesse com que em dado passo refere progressos técnicos recentes, o autor ganha um ar moderno, apesar do seu lastro de citações clássicas e de conceitos espirituosos. Um dos maiores interesses do livro reside no contraste que estabelece entre a «melancolia e nublado português» e «a boa sombra e alegria castelhana»:
  • «uns, noitibós tristes, e outros, pintassilgos alegres, [...] andam os Portugueses à caça de uma melancolia, e sonham os Castelhanos de noite como poderão levar um bom dia»
Pinheiro da Veiga, cujo espírito autonomista se revelou no próprio exercício da magistratura, resistindo à aplicação de leis castelhanas, e que aderiu mais tarde à Restauração, reage de modo por vezes sarcástico contra a constante caricatura com que em Valhadolid é alvejado o seu “Portugalete”, quer em piropos de castelhanas ou em alusões orais diversas, quer até em entremezes, denominados “portuguesadas”, acerca de fanfarronices e sentimentalismos ridículos de tipos fidalgos portugueses. No entanto, não se cansa de também criticar os preconceitos e pechas da aristocracia nacional, à luz do que vê em Castela:
  • a brutal sujeição feminina, que vimos preconizada pela “Carta de Guia de Casados”;
  • a tola presunção provinciana de estirpe e o feitio brigão;
  • a exibição sentimentalona, a alternar com o gosto de falar de um modo obsceno;
  • a falta de limpeza;
  • o baixo nível de convivência.
O mais curioso é que o próprio autor se recorta, no livro, como um obsessionado sentimental pelo belo sexo, rematando mesmo a Segunda Parte por um longo encarecimento das sublimidades do amor freirático que é difícil de tomar apenas como uma ironia, a não ser que funcione como auto-ironia.
Sob o ponto de vista literário, trata-se de uma das obras mais notáveis do nosso século XVII, graças a uma prosa cheia de vivacidade, a um extraordinário sentido de humor, ao seu equilíbrio entre a coloquialidade e a erudição no sentido em que se orientavam já as obras de Jorge Ferreira de Vasconcelos.

Pintura de Nicolas Lancret
Cortesia de historylink

Outras obras seiscentistas de “Memórias”:
  • o “Diário” (1731-33) do 4º conde de Ericeira, e o livro que Eduardo Brasão publicou no Porto, 1940, sob o título de ‘D. Afonso VI’, atribuindo-o a António de Sousa de Macedo;
  • o brasileiro Afonso de Pena Júnior reivindica a autoria desta última obra para Pedro Severim de Noronha.
É ainda como memorialistas que aqui se devem registar dois homens que, além de Rodrigues Lobo, preceptista e antologista epistolográfico, Francisco Manuel de Melo, Padre António Vieira e Frei António das Chagas, deixaram uma significativa correspondência:
  • O bispo Vicente Nogueira (1585-1651), clérigo muito culto, que, exilado em Roma, dá em numerosas cartas ao marquês de Nisa informações bibliográficas, pareceres e observações dos costumes da grande cidade;
  • José da Cunha Brochado (1652-1735), a quem uma longa missão diplomática em Paris proporcionou curiosas reflexões e comparações em numerosas cartas, além de dois tomos de “Memórias e anedotas da Corte de França”.
In História da Literatura Portuguesa, Capítulo VII, António José Saraiva e Óscar Lopes, Porto, Fundação C. Gulbenkian, HALP 2005.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT