Cortesia de assirioalvim
Carta-Prefácio
«De inveja se tratava. O denunciante Mestre Simão era movido pelo despeito, como dirá mais tarde, muitos anos volvidos, o próprio Damião de Goes ao reconhecer o seu inimigo, sem lho nomearem. O humanista chegara a Évora pouco antes, tendo atrasado a viagem desde Julho de 1544, por motivo da doença de sua mulher. Sabido era ter ele sido chamado da Flandres para o cargo de preceptor do príncipe João, lugar que Simão Rodrigues pretendia para si ou, ao menos, para alguém da Companhia de Jesus. Não lhe aproveitaria o tredo proceder uma vez que haveria um “tertius gaudet”, na pessoa de António Pinheiro. O rei Sebastião, filho do príncipe João, é que já seria educado à inteira feição da Companhia, pelo padre Gonçalves da Câmara; e sabe-se com que proveito para ele e para o País.
Depois dessas duas denúncias, ainda terceira é feita, em Lisboa, pelo mesmo personagem, 5 anos corridos, a 24 de Setembro de 1550. Era alguém na sociedade portuguesa Mestre Simão Rodrigues e na querela do promotor se o diz:
- ‘pela qualidade da testemunha que é legalíssima et omni exceptione major’.
Por isso propunha logo a prisão.
Como é então que Damião de Goes foi preso só em 4 de Abril de 1571? Quase 26 anos após a primeira denúncia! O Inquisidor Geral era o mesmo e bem conhecia o denunciado. Foi ele quem travou a mão do promotor. Depois não houve mais denúncia nenhuma. Por que é que se acorda um processo que dormiu durante tantos anos?
Cortesia de wikipedia
As explicações têm sido várias e não andam muito longe umas das outras, entrelaçando-se nalguns pontos. Por motivos de família, dizem uns, tendo o processo sido sustido pelo inquisidor Jerónimo de Azambuja, que recebera a terceira denúncia de Simão Rodrigues, e que estava ligado por laços de família ao denunciado. Outro familiar, Luís de Castro, casado com Catarina de Goes, filha de Damião, teria feito, em 1571, andar o processo por motivos de ganância. Frei Jerónimo de Azambuja morrera em 1563.
Joaquim de Vasconcelos identifica a voz que acordou o processo com os Braganças. Foi o Duque ‘e toda a imensa clientela desta casa, então colossal, e sem nenhuma proporção, num pequeno corpo político bicéfalo, rompeu num coro uníssono: tole, crucifige!’. O motivo do ódio e irritação fora a publicação da “Crónica de D. Manuel” que, como é sabido, foi corrigida ao seu autor. Diz ainda J. de Vasconcelos:
- ‘Rasgaram-lhe as folhas, destruíram-lhe a edição, obrigaram-no a novos gastos. Goes tragou a afronta e prosseguiu serenamente’. E segue: ‘Comprá-lo, era impossível; assassiná-lo, seria imprudência, quando os adversários eram tão notórios.
Esse velho tinha a Europa a seu favor; em todos os grandes centros da inteligência humana, uma vez amiga e cem imprensas para o vingarem. O Duque de Bragança teve medo; toda essa imensa casa tremeu diante de um homem, como passados anos tremeu a própria Inquisição (maldita), não se atrevendo a publicar a sentença que o condenava!
- «O que fez o Duque? Entendeu-se com os Jesuítas. O manto da religião era insuspeito, era natural em política; supunha-se isso. A heresia afastava toda a ideia de protecção do réu; a heresia desonrava o réu e a família toda; a heresia levava o confisco; à sombra da heresia, os inquisidores punham o filho em campo contra o pai, a mulher contra o marido, a filha contra a mãe; a heresia acabava com tudo, de uma vez.
Cortesia de wikipedia
‘Desenterraram então do pó de quase trinta anos a denúncia de Évora (1545) e a segunda de Lisboa, 1550. A 4 de Abril de 1571 Damião era preso pelo corregedor do crime Diogo da Fonseca...’.
A campanha contra Damião de Goes foi tremenda, a partir da publicação da Primeira Parte da Crónica, nos começos de 1566. Foi ela destruída e teve de se fazer nova tiragem, emendada; e podem ver-se os cortes e as emendas no volume do mesmo Joaquim de Vasconcelos sobre “As Variantes das Crónicas”. O tom das críticas de que foi objecto dá-no-lo a do Conde de Tentúgal, Francisco de Melo, publicada por Edgar Prestage que atribui a Goes o fito de ‘dizer poucos bens de El-Rei Manuel I e muitos males de todos os da casa de Bragança’. E vai até propor que ‘se devia mandar queimar porque emendar parece impossível’.
Não seguiremos a polémica, nem isso interessa de momento. Basta-nos ver o diapasão por que afinaram os críticos de Goes e quem eles foram. Naturalmente os netos daqueles que tinham sido valentes e viviam da valentia dos avós; ou então, os que não aceitavam fosse que nó ou entorse fosse na sua árvore genealógica. Lembremos, por exemplo, que no capítulo V onde escrevera Damião de Goes falando do ‘Bispo da Guarda, cuja amiga fora des no tempo...’, se imprimiu depois:
- ‘Bispo da Guarda, homem que por sua boa doutrina, e geração valeu muito nestes Reinos, mas des no tempo...’
O elogio para os descendentes sobrepõe-se sempre à limpidez da verdade. E de onde haviam de tirar muitos dos raquíticos o seu valor se não fizessem brilhar os antepassados sem neles admitirem nódoa? Para nódoa estão os netos». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT