domingo, 5 de fevereiro de 2012

Um génio da Língua e da Literatura: Gaspar Pires Rebelo. Nuno Júdice. «Não deixa também de ser surpreendente a liberdade de costumes que Pires Rebelo nos descreve. Talvez nenhum outro autor, depois de Gil Vicente, nos dê em tão viva pintura uma sociedade marcada pelo “Amor” que se sobrepõe a todos os obstáculos. É este espectro social que faz da “Constante Florinda” uma obra que só terá o seu paralelo na “Peregrinação”»

Cortesia de americanas

«São muito escassas as informações sobre Gaspar Pires Rebelo. De certo, sabe-se que nasceu cerca de 1585, e viveu até 1640 durante o reinado dos Filipes, tendo falecido pouco antes de 1650, quando saem as «Novelas exemplares» que, segundo diz um amigo em prólogo ao leitor, terão sido encontradas entre os papéis do Autor. Diz--nos a «Biblioteca lusitana» que foi «natural da Vila de Aljustrel no Campo de Ourique em a Província Transtagana, freire professo da militar Ordem de São Tiago em o Real Convento de Palmela, prior de Castro Verde, pregador insigne e não menor poeta vulgar».

Conhecem-se dele quatro livros:
  • «Infortúnios trágicos da Constante Florinda, 1ª parte», Lisboa por Giraldo daVinha, 1625 (reedições em 1665, Coimbra, pela viúva de Manoel de Carvalho; 1672, Lisboa, por João da Costa; e 1707, Lisboa, por Bernardo da Costa de Carvalho);
  • «Segunda parte», Lisboa, por António Álvares, 1633 (segunda edição em 1671, Coimbra, pela viúva de Manoel Carvalho). Houve uma edição das duas partes em 1681 por Domingos Carneiro;
  • «Tesouro de pensamentos concionatórios sobre a explicação dos Mistérios e Cerimónias do Santo Sacrifício da Missa, das Vestiduras Sacerdotais em forma de diálogo entre o Sacerdote e seu Ministro», Lisboa, por António Álvares, 1635;
  • «Novelas Exemplares», Lisboa, por António Álvares, 1650 (reedições em 1670, António Craesbeck de Melo; em 1684, Domingos Carneiro; em 1700 por Bernardo da Costa Carvalho).
Grande parte da sua vida, passou-a no Alentejo, em Évora, onde tirou o curso de Teologia na Universidade, e em Castro Verde, onde exerceu a função de prior; mas podemos inferir do conhecimento que ele revela da Europa ter viajado pelo menos por Espanha. Por outro lado. a referência que faz a Braga revela uma ligação privilegiada a essa cidade, para lá, como é evidente, do destaque concedido a Lisboa e a Aljustrel, de onde é natural.

 
Cortesia de livrarialeitura

Se Rebelo tem uma formação eclesiástica, não é menos certo que a faz coincidir com uma extensa cultura profana, da Literatura à Filosofia, e estendendo-se para áreas como as Ciências Naturais (cita os «Naturais», ou naturalistas), a Medicina, a História, a Geografia, a Astronomia. Domina várias línguas; o Latim, o Castelhano, o francês (nele se encontram galicismos como ‘assignar’ (assigner), ‘bem que’ (bien que), etc., o que vai em apoio da tese de Anne Marie Quint de uma possível influência de autores franceses.
Também é provável que conheça o italiano. Na escrita, porém, opta pelo Português, numa época em que muitos outros escolhiam o castelhano, língua dominante. Nesta opção, pesarão razões políticas:
  • não são inocentes, em 1633, as referências feitas na «Segunda parte» ao prestígio de Lisboa, e à importância de Portugal como Reino, embora submetido a Ceres e não a Neptuno, isto é, reduzido à dimensão continenta1, tendo perdido o domínio do mar que, pressupõe-se, está entregue a Espanha.
É, além disso, um Homem entre duas Culturas:
  • a nobre, ou erudita, presente no seu conhecimento das regras do protocolo, das lides bélicas, da arte equestre, da arte da decoração, do vestuário (notáveis as suas descrições exaustivas dos fatos e vestidos dos personagens);
  • mas também a burguesa, que vem da sua preocupação com a Justiça e com o regulamento dos comportamentos sociais pela magistratura e tribunais, defendendo que não haja crime impune.
É, no entanto, a presença do mundo popular que também encontra um forte eco nesta obra, através de provérbios, rifões, sentenças, de que faz um compêndio na admirável “Carta que escreveu um velho a um seu filho” em que se ensina ao servidor de um nobre como se deve comportar para subir na vida e ocupar o lugar do Senhor. Domina com segurança a arte poética, embora não se conheça dele mais do que pequenos poemas disseminados pelo romance.

Cortesia de oceansbridge

Mas o que atesta o seu profundo conhecimento das regras da nobreza seiscentista é o pormenor com que descreve torneios e festas, bem como os concursos literários:
  • e o requinte com que, em Portugal, tais divertimentos eram concebidos terá um testemunho no pedido que Mariana de Habsburgo, viúva de Filipe IV faz ao cavaleiro português António Luís Ribeiro de Barros, em 1668, para idealizar um torneio comemorativo do seu aniversário;
  • «Alguns dos exercícios de cavalaria propostos ao cavaleiro não eram surpreendentes; esperava-se, assim, que soubesse cavalgar, tourear com rojões, atirar com arcabuz, bailar com uma dama e compor um soneto ou glosar uma décima. O ‘cartel’ indicava, ainda, que o cavaleiro devia saber falar três línguas (a latina, a materna e uma outra), defender conclusões de filosofia moral e especulativa ante os padres jesuítas do Colégio Imperial, e argumentar conclusões políticas sobre aforismos de, entre outros, Tácito, Justo Lípsio e Séneca. Além disso, e como última prova, os juízes do torneio deviam avaliar os seus conhecimentos numa matéria tão específica quanto a Arquitectura por ‘las reglas de Vitrubio e Sebastiano Serlio’, diante de uma planta e de um alçado».
Reconhecemos, aqui, alguns dos episódios em que Rebelo descreve este tipo de certames, pouco mais de trinta anos antes deste projecto de torneio idealizado por um português e que quase parece decalcado das palavras da “Constante Florinda”.
Não deixa também de ser surpreendente a liberdade de costumes que Pires Rebelo nos descreve. Talvez nenhum outro autor, depois de Gil Vicente, nos dê em tão viva pintura uma sociedade marcada pelo “Amor” que se sobrepõe a todos os obstáculos, sendo a “Mulher” muitas vezes quem toma a iniciativa da transgressão, violando interditos tão fortes como o “adultério e o incesto” (entre irmãos, entre pai e filha, como no episódio em que se relata a história da jovem que, sem o saber, casa com o pai, após o que reata a ligação com o irmão, de quem tinha um filho, mesmo sabendo já o seu laço familiar), numa imaginação que toca todos os limites da ética. São frequentes, por outro lado, fugas de casa, e desobediência aos superiores, incluindo Religiosos.

É este espectro social que faz da “Constante Florinda” uma obra que só terá o seu paralelo na “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, pelo lugar que é dado à descrição realista do mundo». In Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, Nuno Júdice, Teorema, Lisboa, 2005, Fundação C. Gulbenkian, HALP, 2005.

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