quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O Existencialismo é um Humanismo. Jean-Paul Sartre e Vergílio Ferreira. «… a heterodoxia não é fácil. Serviço divino a poucos cometido, paga-o a moeda que os deuses amam: a amargura e a solidão. A menos que, absurdamente, se considere 'idealista' toda a corrente existencial, essa para quem o ‘estar no mundo’ é um dado de base...»

Cortesia de shared

Fenomenologia
Falar de Sartre é falar do Existencialismo, que ele sobretudo divulgou, como é falar da Fenomenologia, onde colhe uma orientação geral e alguns temas fundamentais. Mas o que seja a Fenomenologia constantemente no-lo perguntamos, meio século, frisa Merleau-Ponty, depois dos primeiros trabalhos de Husserl, Retomemos pois, também nós, a pergunta, não para respondermos cabalmente, até porque não é isso que mais nos importa aqui, mas para determinarmos alguns elementos gerais da mesma Fenomenologia que interessam ao nosso estudo: ao Existencialismo e a Sartre. Aliás, se os grandes mestres hesitam no esclarecimento da Fenomenologia como não hesitarmos nós? Não procede, porém, tanto tal hesitação de ser ainda desconhecida ou mal conhecida a grande massa de inéditos de Husserl ou de ser nova a sua doutrina e corno tal bastante estranha aos nossos hábitos de pensar, por mais que todavia todos nós a esperássemos: a hesitação procede sobretudo de que esta doutrina não é bem uma doutrina mas fundamentalmente apenas um método.

Não deixa, porém, de também nos embaraçar o facto de Husserl incessantemente retomar alguns dos seus temas para interminavelmente os refundir. Da sua obra se pode assim já dizer que ela ‘é o tipo da obra não resolvida, embaraçada, emendada, arborescente’. Acresce o facto, enfim, de que a obra de Husserl, desde as “Investigações Lógicas”, aos últimos trabalhos Erfahrung und Urteil e Crise, se opera numa evolução quase circular. Com efeito, as Investigações, desbravando o terreno pela defesa do rigor do pensar e pelo ataque sobretudo ao psicologismo em voga, fixam fundamentalmente a origem do ‘a priori’ na «intuição categorial»; as Ideias, porém, e sobretudo as “Meditações Cartesianas" dir-se-iam esquecer a realidade objectiva de que se partiu para uma constituição do pensar num domínio transcendental; enfim, os últimos trabalhos remetem de novo para o mundo concreto, sendo porém aí menos visível a fundamentação rigorosa das Investigações (em que todavia, da primeira para a última, dir-se-ia haver também já uma quebra de radicalismo) e estabelecendo-se, por outro lado, mais nítidas, relações com a problemática existencial, regressando-se, de algum moda a uma dimensão ‘psicológicas’, com o acentuação do ‘eu’ no conhecer, problematizando-se a História e dando-se a esse problema um prolongamento ético.

Cortesia de alcpberro 

Contra, porém, a opinião generalizada de que com as “Meditações” atinge Husserl o extremo do «Idealismo», anotarei desde já que especialmente na última, a 5ª, se abrem já largas perspectivas para os temas tipicamente existenciais. Assim, se na 4ª se afirma o monadismo do ‘eu’ e se diz que a «constituição de si para si próprio coincide com a fenomenologia em geral», a temática por exemplo do ‘outro’ (com a da comunicação, da morte etc.) está já presente nas “Meditações”. A menos que, absurdamente, se considere «idealista» toda a corrente existencial, essa para quem o ‘estar no mundo’ é um dado de base, um reconhecimento axiomático. Seja, porém, corno for, é pelo menos evidente que as dissertações finais de Husserl estão longe da secura racional e mergulham nos problemas da vida vivida.

Como um grande pensador que foi, Husserl propôs-se restabelecer em segurança, em rigor, um estatuto do saber, das relações do homem com o mundo e com s vida. Mas o que fundamentalmente o distingue de quase todos os que o precederam (ressalvando apenas ou quase a ambição de um Descartes) é que Husserl não propõe bem uma nova ordenação mental contra as propostas da filosofia do passado: pretende esclarecer as origens do pensar, discutir-lhe os fundamentos. Hegel abordara os mesmos limites e a fenomenologia de Husserl tem que ver com a hegeliana, para lá de uma semelhança denominativa.
Com efeito, Hegel, na “Fenomenologia do Espírito”, tenta historiar-nos a consciência humana desde a sua origem sensível, reconhece a efectividade do conhecer pela anulação do problema sujeito-objecto, afirma o absoluto do saber para cada época que é todavia um relativo em referência ao ‘Absoluto’ final.
 
Cortesia de victfilosofia 

Mas não investigando verdadeiramente as origens do saber, interessando-lhe a dialéctica da sensibilidade apenas como ponto de partida, preocupando-o sobretudo precisamente a história da consciência, tentando ao longo da “Fenomenologia” racionalizar ou interpretar racionalmente (ou verificar-lhe a racionalidade) todo o acontecer histórico até ao limite ideal da união do ‘Absoluto’ consigo, ou seja, fazendo ultimamente apenas uma filosofia da História, implantando um panlogismo no acontecer humano, identificando, pois, ‘ser’ com conceito ou sentido, objectivando, pois, o seu «idealismo, considerando o pensamento sobre o ser como o próprio ser que se pensa, enquanto Husserl põe o acento da ‘doação de sentido’, na consciência, que é assim a ‘doadora’, embora não arbitrariamente separa pois o pensar do que é pensado, por tudo isto, Hegel separa-se radicalmente da fenomenologia husserliana. Paralelamente, ou subsequentemente, compreendemos ainda que um do outro se separem, porque para Hegel (para quem todo o real é racional) é o sistema, a definitividade, que determina a sua pesquisa; para Husserl, que vê o absoluto apenas na vivência, na matéria imanente da consciência, e o relativo na informação do mundo ‘real’, de indefinida determinação, o que determina a sua pesquisa é a incessante procura. Se todavia virmos na “Fenomenologia do Espírito” uma constante procura da, coincidência do ‘Absoluto’ consigo (que jamais se conseguirá...) Husserl e Hegel aparentam-se ainda». In Jean-Paul Sartre e Vergílio Ferreira, O Existencialismo é um Humanismo, Colecção Síntese, Editorial Presença, 1970.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT