sábado, 4 de fevereiro de 2012

Leituras. Jean Teulé. Montespan. «Teulé recria admiravelmente os inverosímeis costumes da nobreza de então. Feios, porcos e maus. A Montespan foi a preferida de entre as favoritas de Luís XIV. A história esqueceu que tinha marido, mas Jean Teulé ressuscita-o»



Cortesia de wikipedia e letrassemfundo

«Ao primeiro raiar da aurora silenciosa, por entre o espesso nevoeiro que invade o prado, quando d'Antin ouve o ruído que as botas com fivelas de prata do cavaleiro de Saint'Aignan fazem nas placas de gelo que cobrem o chão, pede a Noirmoutier, que estava ao seu lado, o frasco de água de Schaffhouse, excelente para as apoplexias. Paris está mergulhada em silêncio. O galo ainda não começou a cantar e, disposto em linha à frente de uma sebe de aveleiras cobertas de geada, o grupo do ofensor Chalais avista a pálida silhueta, envolta em bruma, da claque do ofendido La Frette a sair de um enorme celeiro de feno. Também eles dispostos em linha, avançam sem desvios sobre os seus adversários.
Nada mais sendo, o prado, que um pequeno rectângulo estreito, não tardarão a chegar bem perto, tão perto que os adversários lhe poderão sentir o hálito. À direita, grandes palacetes ainda adormecidos. À esquerda, o convento do Boulevard Saint-Germain, com o seu claustro e as suas celas ocupadas por monges que ninguém quer acordar gritando invectivas inúteis.

Seja como for, não há mais nada a dizer. Já se ultrapassou essa fase. Trata-se de um duelo que só acaba com o primeiro a morrer e d'Antin não se sente à-vontade sob o peso daquela sua peruca cheia de caracóis. Com uma capa escarlate atirada sobre os ombros e um chapéu negro com as abas levantadas à catalã, assume uma pose magnífica, coloca um pé em frente e uma mão ao lado. Mas os dedos tremem-lhe. Depois do anúncio do duelo, não havia ainda muito tempo, as pálpebras tinham-lhe inchado, a testa cobrira-se--lhe de um rubor intenso, semelhante ao que causa a erisipela, o suor escorria-lhe das orelhas, aparecera-lhe uma espécie de sarna na parte de trás da cabeça e sentia o queixo e a axila esquerda devorados por uma espécie de herpes.

Cortesia de books

O acaso presidiu à distribuição da juventude dourada. La Frette enfrentará Chalais. Amilly está destinado a Flamarens. Noirmoutier bater-se-á com Arnelieu e d'Antin vê caminhar na sua direcção o cavaleiro de Saint-Aignan. Cabeleira encaracolada à grega, este homem-pássaro, de longa plumagem e olho vazado pelo contágio com as prostitutas nos bordéis, mede de alto a baixo, sem esmorecer, o adversário semi-envolto na bruma com um olhar seguro que não revela o mínimo receio. Tem uma bela figura e traz na mão uma espada com que vingar a honra do irmão. Avança a passos largos testando a eficiência da lâmina de ferro da sua espada. D'Antin pergunta a si mesmo quando irá ele deter-se, quando se colocará em posição de defesa, mas o outro continua como se tencionasse ultrapassar a sebe de aveleiras. Toc! D'Antin sente que o osso da testa se lhe estoira ao contacto da espada que lhe atravessa de um lado a outro a cabeça, arrastando atrás do crânio a peruca que ainda tenta agarrar, que estupidez...

Que estupidez morrer assim, num dia glacial quando a manhã ainda nem nasceu e cair de pernas para o ar, expondo a todos uns ‘collants’ cinzento-pérola e umas meias de seda cor-de-rosa seguras por um par de ligas quando, à nossa volta, a carnificina é total. À direita, os seus três apoiantes gemem estendidos na relva. Os adversários vão-se embora. Ao tentar soerguer-se, o pequeno Chalais torce os tornozelos porque são demasiado grossas as solas dos sapatos que traz. Coloca uma mão no ventre, que sangra com abundância. Flamarens arrasta atrás de si uma perna ensanguentada enquanto saltita em direcção à pálida silhueta de uma carruagem. Com um ombro desfeito, Noirmoutier corre noutra direcção, ao encontro de um cavalo.
-Para onde tencionas ir? - perguntam-lhe os outros dois. - Para Portugal.


Cortesia de gogmsite

O galo canta. Carpinteiros, ferradores, tanoeiros, tecelões, correeiros, abrem, todos eles, as portas das suas pequenas oficinas. A bruma dissipa-se. O sol passa por cima dos telhados dos palacetes e ilumina um corpo que jaz sobre a relva...
Ao meio-dia, as sombras verticais são cortantes. Caem dos telhados que circundam a Place de Grève em triângulos, sobre a multidão. O silêncio é impressionante, as janelas alugam-se à melhor oferta. Os guardas, devidamente alinhados, rodeiam um estrado.
- E seis!...
O machado de um carrasco com a cabeça encapuzada cai com um movimento tão preciso e tão violento que a cabeça de Saint-Aignan fica ali mesmo, sem sequer sair do cepo. O executor convence-se de que não acertou e que vai ser obrigado a repetir o golpe quando, de repente, a cabeça cai e vai juntar-se a outras cinco que já se encontram nas tábuas do estrado. Como um molho de couves, dir-se-ia que, por fim reconciliadas, se cobrem mutuamente de beijos: na testa, nas orelhas, na boca (se ainda estivessem vivas, teriam certamente começado por aí). O carrasco limpa a testa e dirige a palavra a alguém que está na base do estrado:
- Monsieur de La Reynie, seis de seguida é demasiado! Não sou a ‘Máquina do Mundo’...
- Não vos queixeis. Deveriam ter sido oito - graceja o tenente da polícia de Paris, que exercia também o cargo de procurador em matéria de duelos, afastando-se em direcção ao Châtelet». In Jean Teulé, Montespan, Prémio Maison de La Presse 2008, Grande Prémio Palatine du Roman Historique, colecção Tempos Modernos, Guerra e Paz Editores, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8174-28-4.

Cortesia de Guerra e Paz/JDACT