domingo, 19 de fevereiro de 2012

Leituras. Jean Teulé. Montespan. «Os duelos dizimam a aristocracia francesa e os éditos reais interditam, já desde 1651, sob pena de condenação à morte, essa forma sangrenta de lavar a honra. … o gascão baixa a cabeça e põe-se a olhar para os sapatos de tacões vermelhos quando, de repente, se apercebe de um roçagar de casaco e saias que se senta à sua direita…»


Cortesia de wikipedia e letrassemfundo

«- Senhor Marquês, não há nada que viole de forma mais sacrílega a lei que vem do alto do que a fúria desenfreada dos duelos. Não lhe ensinaram isso na sua Guyenne natal?!...
O jovem gascão que assim insultam naquela sala de tribunal do Châtelet contempla à sua frente, através de uma janela, o sol do final da tarde... Única pessoa sentada numa das cadeiras da sala do tribunal, suspira:
- Dizeis-me isso a mim, que não estou de modo nenhum implicado no assunto, uma vez que não tenho uma natureza conflituosa. O meu irmão tão-pouco a tinha, aliás...
- Mas esteve, apesar disso, implicado num duelo! - interrompe, brutal, La Reynie. - A nobreza não pode, de forma nenhuma, continuar a sacar da espada à mínima oportunidade! Os duelos dizimam a aristocracia francesa e os éditos reais interditam, já desde 1651, sob pena de condenação à morte, essa forma sangrenta de lavar a honra. Os duelos são, para começar, um desafio à autoridade de Sua Majestade, que é a única pessoa a poder decidir quem deve morrer e a forma como cada um deverá viver!...

De pé e cheio de solenidade, La Reynie está nesse ponto do seu discurso quando, no fundo da sala, nas costas do jovem marquês, este ouve o ranger de uma porta e os passos de alguém que avança pelo soalho coberto de ladrilhos. Acabrunhado, o gascão baixa a cabeça e põe-se a olhar para os sapatos de tacões vermelhos quando, de repente, se apercebe de um roçagar de casaco e saias que se senta à sua direita:
- Desculpai o meu atraso, senhor de La Reynie, mas só agora soube a notícia.
A voz é doce e calma. O procurador anuncia:
- Minha Senhora, se o vosso futuro esposo Louis-Alexandre de La Trémoille, marquês de Noirmoutier, voltar a França, será decapitado.

Quando ouve a sua vizinha desabotoar o casaco e baixar depois o capuz sobre os ombros, Le Gascon observa de repente La Reynie de boca aberta, de cada um dos lados de um nariz aquilino, os olhos dele endurecem. Quem poderá ser aquela rapariga capaz de perturbar de tal modo um procurador daqueles? Será uma medusa que transforma os homens em pedra?... Mas La Reynie recompõe-se e vem colocar-se em frente do gascão, que esfrega as mãos húmidas nas calças de cetim branco:
- Meu senhor -, declara-lhe o procurador -, Sua Majestade acusa sem misericórdia o falecido senhor d'Antin, levantando-lhe, inclusivamente, um processo por contumácia.
Dócil, o marquês responde:
- Sou, com todo o respeito possível e todo o zelo imaginável, um muito humilde, muito obediente e muito reconhecido servidor de Sua .Alteza Sereníssima...

Sentada próximo dele, a rapariga informa-se:
- Quem vos avisou deste duelo? - Os homens das lanternas que estão à saída dos espectáculos e dos bailes são os nossos melhores informadores, sorri o chefe da polícia.
Perturbado, o marquês pega tristemente no seu chapéu de plumas que depositara na cadeira à sua esquerda, levanta-se e volta-se, por fim, para a vizinha que, também ela, se levanta. Com a breca!...

Quase se ia sentando de novo. Não é uma beleza, é “A BELEZA” encarnada. O grande gascão, de vinte e dois anos, fica sem fôlego. Ele, que sempre gostara das louras um pouco gorduchas, fica subjugado por aquela sumptuosa maravilha da mesma idade que ele. Tez de leite, olhos verdes dos mares do Sul, caracóis louros à camponesa... O vestido, com um enorme decote, cobre-lhe os ombros, embora as mangas não vão mais além dos cotovelos, numa onda de rendas. Usa luvas. O marquês julga que vai cair-lhe o queixo.
Por cima da sua enorme peruca em forma de crina, que pesa mais de um quilo e faz bastante calor, penteia-se com o chapéu branco mas fá-lo ao contrário. A pena de avestruz que lhe guarnece o chapéu cai sobre o rosto do marquês. Ao querer girar o chapéu ao contrário desloca a peruca, que lhe cai por cima de um olho.

A rapariga solta uma gargalhada encantadora que lhe evoca ternura bem no fundo da alma. Cumprimenta La Reynie – “Até à vista, minha senhora! Oh...”, pede desculpas enquanto a bela, divertida, adapta o passo e os movimentos das ancas ao ritmo daquele desengonçado que se dirige ao fundo da sala. O marquês quer abrir-lhe a porta mas não consegue chegar a tempo, decide deixá-la sair em primeiro lugar mas acaba por lhe passar à frente.
A rapariga fica imediatamente comovida pela sua cortesia desajeitada e pelos olhares de adoração que lhe dirige.
-Para onde ides? - pergunta-lhe com um sorriso. - Por ali, hum... por acolá, e vós?!
- Sempre em frente.



In Jean Teulé, Montespan, Prémio Maison de La Presse 2008, Grande Prémio Palatine du Roman Historique, colecção Tempos Modernos, Guerra e Paz Editores, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8174-28-4.

Cortesia de Guerra e Paz/JDACT