sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A Espia da Rainha. Philippa Gregory. «Temos de refazer a nossa vida. E, logo que nos instalemos, poderás deixar de usar roupas de rapaz, voltar a vestir-te como uma rapariga e casar…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Inverno de 1552-1553

«(…) Lembro-me disto!, disse toda excitada ao meu pai, virando-me da amurada da barcaça enquanto subíamos o Tamisa aos bordos. Lembro-me disto, pai! Lembro-me destes jardins que desciam até ao rio, das grandes casas e do dia em que me mandaste entregar uns livros a um lorde inglês e eu o encontrei no jardim com a princesa. Embora o seu rosto estivesse fatigado da nossa longa jornada, ele encontrou forças para me dirigir um sorriso. Lembras-te, filha?, disse calmamente. Fomos muito felizes nesse Verão. Ela dizia... Calou-se. Nunca mencionávamos o nome da minha mãe, mesmo quando estávamos sozinhos. Ao princípio, tinha sido uma precaução para nos proteger daqueles que a tinham matado e impedir que viessem atrás de nós, mas, agora, procurávamos refúgio tanto do pesar quanto da Inquisição (maldita); e o pesar era um perseguidor implacável.

Vamos viver aqui?, perguntei-lhe cheia de esperança, contemplando os belos palácios e os relvados à beira rio. Após anos de viagem, ansiava por um novo lar. Em nenhum sítio tão imponente quanto este, respondeu-me docemente. Temos de começar de forma modesta, Hannah. Numa pequena loja. Temos de refazer a nossa vida. E, logo que nos instalemos, poderás deixar de usar roupas de rapaz, voltar a vestir-te como uma rapariga e casar com o jovem Daniel Carpenter. E poderemos então parar de fugir?, perguntei baixinho. O meu pai hesitou. Fugíamos há tanto tempo da Inquisição (maldita) que era quase impossível esperar que tivéssemos chegado a um porto seguro. Fugimos na mesma noite em que a minha mãe foi acusada de ser judia, uma falsa cristã, uma marrana, pelo tribunal eclesiástico e há muito que tínhamos partido quando ela foi entregue ao tribunal civil a fim de ser queimada viva na fogueira. Fugimos dela como dois Judas Iscariotes desesperados por salvar a pele, embora o meu pai me contasse mais tarde, com lágrimas nos olhos e repetidas vezes, que nunca a poderíamos ter salvo.

Se tivéssemos permanecido em Aragão, também viriam buscar-nos e, então, teríamos morrido os três. Quando lhe jurei que teria preferido morrer a viver sem ela, ele explicou-me paciente e tristemente que eu viria a aprender que a vida era o bem mais precioso de todos e que, um dia, compreenderia que a minha mãe teria de bom grado sacrificado a sua vida para salvar a minha. Atravessámos clandestinamente a fronteira portuguesa, ajudados por bandidos que levaram todo o dinheiro do meu pai e lhe deixaram apenas os seus livros e manuscritos porque, para eles, não possuíam nenhum valor. Apanhámos a seguir um barco para Bordéus debaixo de uma tempestade, fazendo a travessia no convés, expostos à chuva torrencial e às vagas, e apertando os livros mais preciosos contra o corpo como se fossem crianças que tínhamos de manter quentes e secas.

Depois, fomos por terra até Paris fingindo ser quem não éramos: um mercador e o seu jovem aprendiz, peregrinos a caminho de Chartres, comerciantes itinerantes, um senhor rural e o seu pajem a viajar por prazer, um professor e o seu pupilo que se dirigiam para a universidade de Paris; tudo menos admitir que éramos cristãos-novos, um casal suspeito com o cheiro a fumo dos autos-de-fé ainda impregnado na roupa e os terrores da noite ainda agarrados ao nosso sono. Fomos ter com os primos da minha mãe em Paris e eles enviaram-nos para Amesterdão ao cuidado de parentes que, por sua vez, nos dirigiram para Londres. Devíamos esconder a nossa raça sob o céu inglês e tornarmo-nos londrinos, cristãos protestantes. Acabaríamos por gostar. Eu tinha de aprender a gostar. Os parentes, o Povo cujo nome não pode ser pronunciado, cuja fé é oculta, o Povo condenado a vaguear banido de todos os países da Cristandade, prosperavam em segredo tanto em Londres como em Paris ou Amesterdão. Todos nós vivíamos como cristãos e observávamos as leis da Igreja, os dias santos e de jejum, e os rituais. Como a minha mãe, muitos de nós acreditávamos piamente em ambas as fés, cumpríamos o sabat às escondidas, acendíamos uma vela, preparávamos a comida e não cumpríamos a lida da casa, de modo a respeitar o dia santo através de fragmentos de orações judias meio esquecidas e, depois, no dia seguinte, íamos à missa com a consciência tranquila. A minha mãe ensinou-me a Bíblia e toda a Tora de que se lembrava como uma única lição sagrada. Preveniu-me que as relações da nossa família e a nossa religião eram secretas, um segredo profundo e perigoso. Tivemos de ser discretos e confiar em Deus, nas igrejas a que tínhamos feito generosas doações e nos nossos amigos: freiras, padres e professores que conhecíamos tão bem». In Philippa Gregory, A Espia da Rainha, 2003, 2005, Livraria Civilização Editora, 2005, ISBN 978-972-262-360-5.

Cortesia de LCivilizaçãoE/JDACT

JDACT, Philippa Gregory, Literatura, Século XVI,