quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Elena Ferrante. História de Quem Vai e de Quem Fica. «Caí no choro, e Lila me olhou com fastio. Sentadas num banco perto dali, aguardamos em silêncio que Gigliola fosse levada embora»

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«Encontrei Lila pela última vez cinco anos atrás, no Inverno de 2005. Estávamos passeando de manhã cedo pelo estradão e, como há anos vinha acontecendo, não conseguíamos nos sentir à vontade. Lembro que apenas eu falava; ela cantarolava, cumprimentava gente que nem respondia, e nas raras vezes que me interrompia só pronunciava frases exclamativas, sem um nexo evidente com o que eu dizia. Ao longo dos anos, muita coisa ruim tinha ocorrido, algumas horríveis, e para retomar a via da intimidade teríamos de nos fazer confidências secretas, mas eu não tinha a força para encontrar as palavras, e ela, a quem talvez não faltasse força, não tinha a vontade, nem via utilidade nisso. De todo modo eu gostava muito dela e sempre que ia a Nápoles procurav encontrá-la, ainda que, devo dizer, sentisse um certo medo. Ela estava muito mudada. A velhice já tinha levado a melhor sobre nós duas, mas, enquanto eu combatia a tendência a ganhar peso, ela se estabilizara numa magreza só pele e ossos. Tinha cabelos curtos, que ela mesma cortava, e muito brancos: não por escolha, mas por desleixo. O rosto, bastante marcado, lembrava cada vez mais o do pai. Ria de nervoso, quase um guincho, e falava altíssimo. Gesticulava sem parar, dando ao gesto uma determinação tão feroz que parecia querer cortar em dois os edifícios, a rua, os passantes, a mim. Estávamos na altura da escola fundamental quando um homem jovem, que eu não conhecia, correu para nós e gritou para ela que, num canteiro ao lado da igreja, tinha sido encontrado o cadáver de uma mulher. Fomos depressa para os jardinzinhos, Lila me arrastou no meio ao círculo de curiosos abrindo caminho com maus modos. A mulher jazia de lado, era extraordinariamente gorda, vestia um impermeável verde escuro e fora de moda. Lila a reconheceu num instante, eu, não: era nossa amiga de infância Gigliola Spagnuolo, ex-mulher de Michele Solara.

Eu não a encontrava havia décadas. O rosto bonito se estragara, os tornozelos estavam enormes. Os cabelos, antigamente castanhos, eram agora de um vermelho fogo, longo como quando era uma garota, mas ralos, espalhados sobre o humo revolvido. Apenas um dos pés calçava um sapato de salto baixo, muito gasto; o outro estava metido numa meia de lã cinza, furada no dedão, ao passo que o sapato estava um metro e meio mais à frente, como se, tivesse, se desprendido depois de um chute provocado por dor ou por espanto. Caí no choro, e Lila me olhou com fastio. Sentadas num banco perto dali, aguardamos em silêncio que Gigliola fosse levada embora. O que havia acontecido com ela, como tinha morrido, por ora não se sabia. Depois fomos para a casa de Lila, o velho e pequeno apartamento dos pais, onde agora ela morava com o filho Rino. Conversamos sobre nossa amiga, ela me falou mal dela, da vida que tinha levado, das pretensões, das deslealdades. Mas neste momento era eu quem não conseguia ouvir, pensava naquele rosto de perfil na terra, em como eram ralos os cabelos compridos, nas manchas esbranquiçadas do crânio. Quantas pessoas que tinham sido crianças com a gente e não estavam mais vivas, desaparecidas da face da terra por doença, porque os nervos não tinham resistido à lixa dos tormentos, porque seu sangue tinha sido derramado. Por um tempo ficamos absortas na cozinha, sem que nenhuma das duas se decidisse a tirar a mesa, e então saímos de novo.

O sol do belo dia de inverno conferia às coisas um aspecto sereno. O bairro velho, diferentemente de nós, permanecera idêntico. Resistiam as casas baixas e cinzentas, o pátio de nossas brincadeiras, o estradão, as bocas escuras do túnel e a violência. No entanto a paisagem em torno mudara. A extensão esverdeada dos pântanos não existia mais, a velha fábrica de conservas desaparecera. No seu lugar havia o brilho dos espigões de vidro, noutros tempos sinais de um futuro radiante no qual ninguém nunca acreditou. Com o passar dos anos todos registaram as mudanças, às vezes com curiosidade, quase sempre distraidamente. Quando menina eu imaginava que, para além do bairro, Nápoles oferecesse maravilhas. O arranha-céu da estação central, por exemplo, me fascinara muito, décadas atrás, por sua elevação andar a andar, um esqueleto de edifício que então nos parecia altíssimo, ao lado da arrojada estação ferroviária». In Elena Ferrante, História de Quem Vai e de Quem Fica, 2013, Edição Relógio D'Água, 2015, ISBN 978-989-641-557-0.

Cortesia de Relógio D’Água/JDACT

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