quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Depois, levantara-se e, pensativo, dera uns passos pela sala. Bernardino insistira: este Santamaria foi preso pelos franceses, que o entregaram como um acto de boa vontade»

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«(…) O anterior rei, João V, recusara-se a pagar o resgate do navio, abandonando os seus tripulantes. Esta parte da história era verídica, pois Bernardino lembrava-se bem do caso, apesar de já terem passado muitos anos. No entanto, o autor da petição acrescentava que fora obrigado, para sobreviver, a enveredar pela vida de pirata, caso contrário seria morto pelos árabes. Agora, que estava de volta a Portugal pela primeira vez, relembrava a sua nacionalidade original, a sua fidelidade ao rei e pedia clemência e liberdade. Bernardino espantara-se com a assinatura da petição. Conhecia o nome, e lembrava-se bem daquele rapaz, muito jovem, que também fizera parte do grupo dos amigos fiéis de Sebastião José Carvalho Melo. E esse era, obviamente, o problema. Ao longo de mais de um mês, Bernardino não tivera coragem de falar no caso a Sebastião José. Até que chegara o dia em que não fora possível adiar mais. Como dizes que o homem se chamava?, perguntara Sebastião José. Agora ou no passado?, questionara Bernardino. No passado. Ao ouvir o meu nome português, Sebastião José ficara silencioso. Depois comentara: passaram muitos anos... Temeroso, Bernardino contou-me que acrescentara de imediato: não acredito nesta história. O tal Santamaria, um pirata, deve ter ouvido falar no barco português que ficou por lá, sem o resgate ser pago, e agora está a tentar fazer-se passar pelo verdadeiro português que ia no barco, que provavelmente está debaixo de terra há muitos anos. É uma artimanha, de certeza.

Sebastião José relera a petição. Depois, levantara-se e, pensativo, dera uns passos pela sala. Bernardino insistira: este Santamaria foi preso pelos franceses, que o entregaram como um acto de boa vontade. Se o libertarmos, vamos ficar malvistos... O ministro só se decidiu a falar algum tempo depois: um pirata é um criminoso. Pela minha parte, fica na cadeia, seja ele quem for. Mas, formalmente, não tenho poderes para libertar presos. Com o secretário do Reino doente, só o rei pode aceitar ou negar essa petição. Terás de levar-lhe o caso amanhã. Bernardino assim fez, e era essa a razão de viajar agora naquela carruagem, acompanhando a corte até Belém. De certa forma, espantava-o um homem tão resoluto como Sebastião José não ter tomado qualquer decisão acerca daquela estranha petição, mas só podia especular sobre as razões. De repente, a carruagem parou. Tinham chegado ao destino. As duas aias sacudiram as suas saias e compuseram-se, com trejeitos femininos. Uma delas, mais afoita, dirigiu-se ao confessor real: padre Malagrida, não leve a mal, mas estou em pecado e gostaria de me confessar antes da missa. O senhor padre pode fazê-lo? O jesuíta franziu a testa: não tenho tempo para ti, pecadora. Mas que fizeste? Como conspurcaste a tua alma? Aflita, a aia não ousou revelar as suas faltas em frente de estranhos. O padre Malagrida fez uma careta: não interessa... As mulheres são filhas do mal, transportam o demónio dentro delas. Não tenho tempo para ti, pecadora, vou confessar o rei antes da missa...

A criada fez um aceno submisso com a cabeça, e o confessor Malagrida saiu pela porta da carruagem. Bernardino encolheu os ombros e incentivou a rapariga: há mais padres na igreja, arranjas um confessor de certeza. Saltou da carruagem e apreciou os pátios, atulhados com a chegada da comitiva real. Centenas de pessoas tinham acompanhado o rei desde o Terreiro do Paço. Além dos cocheiros, dos soldados, das criadas e das aias, das cozinheiras e dos ajudantes-de-campo, dos escudeiros e das dezenas de escravos e escravas, havia também muitos nobres que tinham querido ouvir a missa junto da família real. Bem dizia Sebastião José que aquela gente se alapava ao rei, como carraças a um cão, mas pensamentos desses não eram admissíveis a alguém como Bernardino. O ajudante de escrivão observou a rainha e as suas filhas a recolherem aos seus aposentos, e viu o padre Malagrida aproximar-se do monarca José I, que o saudou. Trocaram palavras, e depois Malagrida seguiu uns passos atrás do rei, a caminho do palácio. Iria certamente apoderar-se dos pecados reais com voracidade, o jesuíta.

Deixando-se ficar nos pátios, Bernardino reflectiu na misteriosa petição. Seria eu quem dizia que era? Bernardino recordava-se de um bom moço em jovem. Pelos vistos tinha tido azar na vida, fora abandonado pelo rei anterior e enfiado nas masmorras árabes. Custava-lhe ter dito mal de mim, mas a última coisa que desejava era escarafunchar nas feridas do passado de Sebastião José. Era melhor deixar as coisas correrem o seu curso. Talvez o rei decidisse a minha libertação, reparando o erro do seu pai. A missa começou a horas e a maioria dos fiéis ou entrou na pequena igreja ou ficou junto à porta, escutando os padres e os seus cânticos em latim. Porém, Bernardino depressa perdeu a paciência. Sem dar nas vistas, decidiu-se por umas voltas aos jardins do palácio. Conhecia a predilecção especial do rei pelos animais exóticos, e tinha mais uma boa oportunidade para os apreciar sem que ninguém o incomodasse. Aproximou-se da zona das jaulas e entusiasmou-se ao ver os leões, enormes, com frondosas jubas a envolverem-lhes o focinho. Corriam de um lado para o outro, pareciam agitados e nervosos, mas sempre tivera a ideia de que eram assim por natureza». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,