«(…) O anterior rei, João V, recusara-se a pagar o resgate do navio, abandonando os seus tripulantes. Esta parte da história era verídica, pois Bernardino lembrava-se bem do caso, apesar de já terem passado muitos anos. No entanto, o autor da petição acrescentava que fora obrigado, para sobreviver, a enveredar pela vida de pirata, caso contrário seria morto pelos árabes. Agora, que estava de volta a Portugal pela primeira vez, relembrava a sua nacionalidade original, a sua fidelidade ao rei e pedia clemência e liberdade. Bernardino espantara-se com a assinatura da petição. Conhecia o nome, e lembrava-se bem daquele rapaz, muito jovem, que também fizera parte do grupo dos amigos fiéis de Sebastião José Carvalho Melo. E esse era, obviamente, o problema. Ao longo de mais de um mês, Bernardino não tivera coragem de falar no caso a Sebastião José. Até que chegara o dia em que não fora possível adiar mais. Como dizes que o homem se chamava?, perguntara Sebastião José. Agora ou no passado?, questionara Bernardino. No passado. Ao ouvir o meu nome português, Sebastião José ficara silencioso. Depois comentara: passaram muitos anos... Temeroso, Bernardino contou-me que acrescentara de imediato: não acredito nesta história. O tal Santamaria, um pirata, deve ter ouvido falar no barco português que ficou por lá, sem o resgate ser pago, e agora está a tentar fazer-se passar pelo verdadeiro português que ia no barco, que provavelmente está debaixo de terra há muitos anos. É uma artimanha, de certeza.
Sebastião José relera a petição.
Depois, levantara-se e, pensativo, dera uns passos pela sala. Bernardino insistira:
este Santamaria foi preso pelos franceses, que o entregaram como um acto de boa
vontade. Se o libertarmos, vamos ficar malvistos... O ministro só se decidiu a
falar algum tempo depois: um pirata é um criminoso. Pela minha parte, fica na
cadeia, seja ele quem for. Mas, formalmente, não tenho poderes para libertar
presos. Com o secretário do Reino doente, só o rei pode aceitar ou negar essa
petição. Terás de levar-lhe o caso amanhã. Bernardino assim fez, e era essa a
razão de viajar agora naquela carruagem, acompanhando a corte até Belém. De
certa forma, espantava-o um homem tão resoluto como Sebastião José não ter
tomado qualquer decisão acerca daquela estranha petição, mas só podia especular
sobre as razões. De repente, a carruagem parou. Tinham chegado ao destino. As
duas aias sacudiram as suas saias e compuseram-se, com trejeitos femininos. Uma
delas, mais afoita, dirigiu-se ao confessor real: padre Malagrida, não leve a
mal, mas estou em pecado e gostaria de me confessar antes da missa. O senhor
padre pode fazê-lo?
O jesuíta franziu a testa: não tenho tempo para ti, pecadora. Mas que fizeste?
Como conspurcaste a tua alma? Aflita, a aia não ousou revelar as suas faltas em
frente de estranhos. O padre Malagrida fez uma careta: não interessa... As
mulheres são filhas do mal, transportam o demónio dentro delas. Não tenho tempo
para ti, pecadora, vou confessar o rei antes da missa...
A criada fez um aceno submisso com a
cabeça, e o confessor Malagrida saiu pela porta da carruagem. Bernardino
encolheu os ombros e incentivou a rapariga: há mais padres na igreja, arranjas
um confessor de certeza. Saltou da carruagem e apreciou os pátios, atulhados
com a chegada da comitiva real. Centenas de pessoas tinham acompanhado o rei
desde o Terreiro do Paço. Além dos cocheiros, dos soldados, das criadas e das
aias, das cozinheiras e dos ajudantes-de-campo, dos escudeiros e das dezenas de
escravos e escravas, havia também muitos nobres que tinham querido ouvir a
missa junto da família real. Bem dizia Sebastião José que aquela gente se
alapava ao rei, como carraças a um cão, mas pensamentos desses não eram
admissíveis a alguém como Bernardino. O ajudante de escrivão observou a rainha
e as suas filhas a recolherem
aos seus aposentos, e viu o padre Malagrida aproximar-se do monarca José I, que
o saudou. Trocaram palavras, e depois Malagrida seguiu uns passos atrás do rei,
a caminho do palácio. Iria certamente apoderar-se dos pecados reais com
voracidade, o jesuíta.
Deixando-se ficar nos pátios,
Bernardino reflectiu na misteriosa petição. Seria eu quem dizia que era?
Bernardino recordava-se de um bom moço em jovem. Pelos vistos tinha tido azar
na vida, fora abandonado pelo rei anterior e enfiado nas masmorras árabes.
Custava-lhe ter dito mal de mim, mas a última coisa que desejava era
escarafunchar nas feridas do passado de Sebastião José. Era melhor deixar as
coisas correrem o seu curso. Talvez o rei decidisse a minha libertação,
reparando o erro do seu pai. A missa começou a horas e a maioria dos fiéis ou
entrou na pequena igreja ou ficou junto à porta, escutando os padres e os seus
cânticos em latim. Porém, Bernardino depressa perdeu a paciência. Sem dar nas
vistas, decidiu-se por umas voltas aos jardins do palácio. Conhecia a
predilecção especial do rei pelos animais exóticos, e tinha mais uma boa
oportunidade para os apreciar sem que ninguém o incomodasse. Aproximou-se da
zona das jaulas e entusiasmou-se ao ver os leões, enormes, com frondosas jubas
a envolverem-lhes o focinho. Corriam de um lado para o outro, pareciam agitados
e nervosos, mas sempre tivera a ideia
de que eram assim por natureza». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu,
Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para
sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,