quinta-feira, 26 de novembro de 2020

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «O que fazer? Há sempre solução para tudo. Não pode sair por um lado, saia por outro, dizia a avó. Saia por outro... Saia por outro... Na casa da avó era possível sair pela janela…»

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Conclave

26 de Agosto de 1978

«(…) Tão logo chega ao primeiro andar, escuta o movimento das dobradiças da porta de baixo. Um estrépito grave que incomoda os ouvidos, ainda mais no meio da escuridão da casa. Havia muito tinha a intenção de mandar lubrificá-las, mas protelara sempre, por uma ou outra razão. Ficara na intenção; mas não pensa nisso Sarah Monteiro. O que a incomoda nesse momento é a porta que se abriu e os passos intrusos no interior da própria casa. Caminha em direcção ao quarto, sempre de ouvidos atentos, os sentidos da sobrevivência totalmente despertos, assim como o medo aterrador. O intruso passeia pelo andar inferior, calmamente, sem se incomodar em disfarçar sua presença. O peso do calçado faz estalar o soalho muito devagar. Sarah imagina-o passando o local a pente-fino, à cata de algo que nem mesmo ela sabe o que é. Uma sensação frustrante de impotência toma conta do seu corpo e lança-a num torpor de imagens desconexas do quarto onde acaba de entrar, o seu, mergulhado na escuridão. Uma cortina vermelha, igual às do piso inferior, filtra a luz externa, arroxeando a divisão e emprestando-lhe um ar soturno arrepiante. Afasta-a sem fazer barulho, o carro negro continua lá em baixo, no mesmo local onde o viu pela primeira vez. A impávida serenidade do veículo a destoar do seu próprio estado de espírito. Não, é necessário manter a lucidez. Não se deixe abater, pensa. Vamos, coloque essa cabeça para funcionar. O que tem de fazer? Os passos em baixo continuam a fazerem-se ouvir, como um martelo batendo em madeira. Rudes, fortes, desregrados, como a dizerem em voz alta: estou aqui!

O que fazer? Há sempre solução para tudo. Não pode sair por um lado, saia por outro, dizia a avó. Saia por outro... Saia por outro... Na casa da avó era possível sair pela janela do primeiro andar porque estava construída na encosta do monte, literalmente. Mas adaptar a realidade àquela casa, àquela cidade inglesa, absolutamente plana, não é a mesma coisa. No entanto, há sempre que se contar com a famosa circunspecção britânica. Tudo tem saídas de emergência, mesmo as casas. O perigo de incêndio em Londres é iminente, dadas as construções dos interiores feitas em madeira e a idade dos edifícios. De grande incêndio, bastou o de 2 de Setembro de 1666. Até essa casa tem uma saída de emergência. Mas onde? Não existem portas nesse andar. As janelas abrem muito pouco. A não ser..., a do banheiro. É isso! A janela do banheiro abre totalmente. E, ao lado, fixas na parede, há escadas de ferro para saída de emergência. A solução. Obrigada, avó!

Uma solução, um plano, um intruso. Sarah Monteiro respira fundo. O banheiro fica logo em frente. É só passar a porta, atravessar a extensão do corredor e entrar. Segundos, meros segundos, separam-na do exterior. Um... dois... três... Inicia a corrida, para tropeçar e cair logo na carpete do corredor. O intruso, que ouviu os passos de Sarah, lança-se para as escadas. Ela se levanta e corre para o banheiro. Pancadas fortes sobre os degraus. Sarah, dentro do banheiro, sobe para cima da banheira e tenta abrir a janela. A falta de uso emperrou o corrediço de tal maneira que nenhuma força a abrirá. Prova disso é a expressão de esforço no rosto de Sarah, que, não fosse a escuridão, mostraria o rubor declarado que lhe provoca o afogueamento da respiração. Os passos ultrapassaram as escadas e são audíveis no corredor. A pessoa em questão já não corre: caminha lentamente pelo corredor, espreitando cada divisão por onde passa.

Sarah faz uma última tentativa para abrir a maldita janela..., nada feito. Aquilo não levaria a nada. No corredor, um homem, envergando um sobretudo negro, enrosca o silenciador na Beretta. Sarah esmaga-se contra a parede do banheiro. Talvez ainda dê tempo de fazer alguma coisa. Se conseguisse quebrar o vidro todo de uma vez... De quantos segundos necessitaria para quebrá-lo e sair? Cinco? Dez? De quantos segundos precisará o assassino para percorrer os poucos metros que faltam assim que escutar os estilhaços? Dois? Três? Talvez menos. Provavelmente morreria com um pé para fora da janela, se tivesse tempo para tanto. Provavelmente... Mais um passo, outro... O ranger da madeira, o ranger dos dentes de Sarah, reflexos inconscientes do corpo alerta. O medo paralisa seus movimentos. Só consegue ouvir o ruído do soalho a cada passo, a respiração muito calma do intruso bem dentro da sua cabeça. Está acostumado àquilo, com certeza. Um profissional. Para ele, Sarah não passa de mais uma vida descontinuada, consegue ainda pensar a jovem. Uma vida sem nenhum interesse nem relevância para quem vem tirá-la. Um corpo em breve inerte, sem sonhos, sem projectos, sem nada. Um corpo não passa de um corpo. É então que a voz do pai e da avó substituem todos os outros pensamentos. Lembra-se do que dizia a avó? Há sempre solução para tudo. Só não há para a morte.

De súbito, exacerbada por uma sensação de urgência, Sarah sai da banheira o mais silenciosamente possível. As meias e o seu diminuto peso ajudam nesse efeito. Procura algo, os olhos há muito habituados à pouca iluminação. O secador? Não. O spray de cabelo? Também não. Toalhas, perfumes, cremes, toalhas, vassoura..., não, não, não. Encosta-se na parede junto à pia, impotente. Ao seu lado, à altura da cabeça, o extintor. Isso sim! Se julga que não vai ter luta, está muito enganado, balbucia em surdina, com o extintor nas mãos, sentindo-lhe o peso. Comprime-se contra a parede, junto à abertura para o corredor. Segura o extintor com as duas mãos e mantém-se à escuta. Três metros..., uma passada..., dois metros..., uma passada..., um metro... Primeiro foi a nuvem de pó espumante com que Sarah pulverizou toda a entrada, aliando uma névoa densa à luz fraca. O intruso não deu sinais de vida durante alguns segundos, na tentativa de deixar pousar o produto liberado pelo extintor, mas logo Sarah voltou à carga, esvaziando o conteúdo. A segunda utilidade seria o de arma de arremesso, mas o silêncio do desconhecido tomou-se desesperador. Onde está?, geme em voz baixa». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT

JDACT, Luís Miguel Rocha, Literatura, Roma, Religião,