sábado, 28 de novembro de 2020

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «Parecia fresco, enérgico, ainda que os olhos estivessem raiados de vermelho e se notassem as olheiras em volta deles. Talvez descansasse pouco…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os ladrilhos respiravam debaixo dos pés deles, testemunhas silentes de séculos de passadas que transportavam a história dos actos e dos livros, dos sussurros, das intrigas e dos ideais. Vais dizer alguma coisa?, quis saber Jacopo, ainda irritado, mas com um tom de voz mais suave. Está frio, não está? Jacopo virou-lhe a cara. Aquele sempre fora bom a desconversar. Só tirou o chapéu quando entrou pela porta que Guillermo lhe indicou. Ao fundo, junto à janela, um homem de meia-idade estava recostado na cadeira a passar o dedo pelo ecrã de um iPad. A tecnologia também marcava presença na casa de Deus. Doutor Sebastiani, cumprimentou o homem, levantando-se da cadeira assim que o viu, com um sorriso nos lábios. Bons olhos o vejam. Pousou o tablet em cima do tampo da secretária mostrando o cabeçalho do Il Messagero. Reverendo Giorgio. Não me importava nada de o ver um pouco mais tarde. Estendeu a mão para cumprimentar o prelado. Acenou com a cabeça para o tablet. Ainda acredita em boas notícias? Estou a seleccioná-las para a leitura matinal do Santo Padre. Mas nada de novo, de facto. A Europa está a ruir connosco dentro, respondeu o clérigo, bem-disposto, apesar da hora. O Santo Padre não se cansa de ler sempre a mesma lengalenga? A informação é tudo hoje em dia. Mesmo que seja sempre a mesma coisa. Apontou para uma cadeira que Jacopo, sem cerimónia, aproveitou, e contornou a secretária para retornar à sua. Guillermo ficou em pé, encostado a uma mesa de reuniões.

A que se deve a honra de ser chamado a esta hora da madrugada?, atirou Jacopo sem aguardar que o outro se sentasse. Pois, peço desculpa por tê-lo feito levantar-se tão cedo, doutor Sebastiani. Pode chamar-me só doutor, atalhou o mais velho, corrosivo. Vá directo ao assunto, por favor. Giorgio entrelaçou os dedos e exibiu uma expressão pensativa como se estivesse a delinear uma estratégia para começar a falar. Já ouviu falar dos irmãos Finaly?, acabou por perguntar. Jacopo anuiu com a cabeça e franziu o sobrolho em alerta. A que propósito ele perguntara aquilo? O que é que sabe deles?, quis certificar-se o secretário. A esta hora da noite?, escarneceu o historiador. Giorgio sorriu com condescendência e pousou as mãos em cima da secretária. Jacopo não conseguia perceber se ele tinha dormido alguma coisa ou se não pregava olho desde a noite anterior.

Parecia fresco, enérgico, ainda que os olhos estivessem raiados de vermelho e se notassem as olheiras em volta deles. Talvez descansasse pouco, o que era apanágio do posto que ocupava. Quem servia o Santo Padre oferecia mais do que tempo e dedicação, oferecia a vida. Jacopo ajeitou-se na cadeira e abriu o arquivo de memórias onde, algures entre Pio XII, Adolf Hitler, Segunda Guerra Mundial, Holocausto, nazismo e outros itens relacionados, encontrou o registo correspondente ao dos irmãos Finaly. Era um dossier simples com informação escassa e nunca verificada. Quer mesmo a minha versão?, quis certificar-se. Giorgio anuiu. Prezava o doutor pela sua frontalidade e honestidade intelectual. Queria ouvir a sua versão da história. O que eu sei, e isto é tudo baseado em fontes sem qualquer crédito, portanto, boatos… Não se preocupe. Continue. Eram dois irmãos judios, crianças, que foram escondidos dos familiares depois da guerra, em França. Robert, o mais velho, e Gérald, o mais novo. Fazem parte dos milhares de crianças judias que, supõe-se, não foram devolvidos às famílias. Giorgio suspirou. Parecia incomodado. Mas porque é que estavam à nossa guarda? Jacopo fitou-o perplexo. Não sabe? O alemão voltou a suspirar e levou uma mão ao rosto. Acredite ou não, até hoje nunca tinha ouvido falar deles. Posso ser completamente honesto consigo? Não espero outra coisa, respondeu Jacopo com evidente franqueza. Estou completamente a leste disto tudo.

Foi a vez de o historiador respirar fundo. Olhou para o relógio que trazia no pulso e perdeu a última esperança que tinha de voltar ao aconchego da cama. Já passava das cinco. Tenha em atenção que a informação de que disponho carece de verificação. Se pretender, posso, mais tarde, fazer uma pequena pesquisa e dar-lhe dados mais fundamentados, repetiu a advertência. Comunicada a qualidade da informação, Jacopo recomeçou o seu relato. A partir de 1942 ou 1943, o Papa Pio XII deu ordens a todas as instituições religiosas que albergassem os refugiados de guerra sem olharem à religião. Deviam ser todos vistos como seres humanos. Milhares de pessoas foram acolhidas em mosteiros, conventos, famílias de acolhimento católicas, e onde quer que houvesse espaço. Maioritariamente judeus?, questionou Giorgio. Sim. No início, o Papa, especialmente em Roma, e por via do, na altura, monsenhor Montini, conseguiu negociar com o general das SS Reiner Stahel, que declarou a extraterritorialidade de todas as instituições religiosas. Aqui mesmo, no Vaticano, refugiaram-se milhares de judeus e o Papa esperava que todas as instituições, através desse acordo com Stahel, fossem tratadas de igual forma. Aqui os nazis nunca se atreveram a entrar sem serem convidados. Porém, os alemães, que não eram burros (?) nenhum, lembrou-se nesse momento que estava a falar com um, começaram a fazer inspecções nos mosteiros e nos conventos. Foi uma época muito perigosa. Resumindo, no final da guerra havia, para além dos órfãos, muitas crianças por reclamar». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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