Coimbra, Páscoa de 1131
«(…) Realizados os
cumprimentos, Afonso Henriques fixou o olhar na belíssima sela do animal de
Telo e, não sendo capaz de conter a curiosidade, perguntou onde o outro a
comprara. Em Montpellier, respondeu o religioso. Descreveu-nos o seu recente
périplo por longínquas paragens, até à Cidade Santa de Jerusalém. Tinha ido com
o prior Teotónio e a viagem fora inesquecível, embora ensombrada pelo desgosto
sentido ao verificarem que, em Roma, acontecera um novo cisma. Anacleto,
apoiado pelos arcebispos romanos, não aceita Inocêncio II como Papa. E parece
que vosso primo Afonso VII e os leoneses dão suporte às suas maliciosas
intenções, relatou o arcediago Telo.
As complexas
divisões da cidade papal devem ter parecido ao príncipe de Portugal distantes e
maçadoras, pois o seu olhar manteve-se pousado na garbosa sela ornamentada de
Telo. Como a poderia ter?, perguntou. O proprietário da dita tinha fama de
homem despojado, mas surpreendeu-nos quando revelou uma faceta de hábil
negociador. Trocava esta sela, sem hesitar, por um terreno junto aos Banhos
Régios, fora da muralha. O arcediago Telo apontou para o local em causa, mais
frequentado por mouros ou moçárabes, que tinham hábitos de lavagem e higiene
bem mais apurados do que a maioria dos cristãos. Agora os religiosos também vão
a banhos?, interrogou-se Gonçalo Sousa, sempre jocoso. Com um leve sorriso,
Telo explicou-nos que desejavam construir no local um mosteiro, chamado de
Santa Cruz, onde viveriam os novos monges da vida apostólica, não fora, mas
dentro da cidade, não fechados em clausura, mas presentes no mundo. A original
ideia agradou ao meu amigo, que ainda mais contente ficou quando soube que Teotónio,
antigo prior de Viseu, aceitara cargo idêntico no futuro mosteiro. Afonso
Henriques admirava muito aquele homem, que considerava um santo e um protector.
Contudo, demonstrando
que o talento comercial também lhe corria nas veias, o príncipe hesitava em
conceder tantos terrenos em troca de uma única sela, o que levou meu tio Ermígio
a incentivá-lo a realizar a doação, colocando-a por escrito em documento nobre,
como um gesto de regência e não um mero negócio particular. Assim farei,
concedeu, por fim, Afonso Henriques. O que ninguém esperava era que a generosa
dádiva gerasse tanta polémica. Nos dias seguintes, quando se tornou pública a
oferta da propriedade, o bispo de Coimbra revelou profundo desagrado com a instalação
de um mosteiro daqueles na sua cidade. Alegou o bispo Bernardo ser ele quem
devia autorizar a instalação de religiosos na região. Oferecer uma propriedade
e aprovar um mosteiro, geridos pelo presbítero Telo e pelo prior Teotónio, sem
sequer o consultar, era afrontar a sua posição! Numa reunião acalorada na Sé,
apresentou argumentos requintados para esconder as suas verdadeiras motivações:
o ciúme que lhe provocavam Telo e os seus monges em Coimbra, aliado à incomodidade
por ter sido totalmente ignorado pelo príncipe de Portugal.
Não conheceis as divisões que grassam em Roma?, trovejou. O
bispo Bernardo era um homem pequeno, magro e seco de carnes, mas cheio de
genica e duro nas suas proclamações, não sendo muito estimado pela população,
que o considerava por vezes injusto e demasiado ríspido, com uma moral exigente
que muitos diziam não aplicar à sua conduta privada. Mas a sua pergunta era
pertinente: o papado estava dividido por um cisma e havia quem tomasse já
partido por Anacleto contra Inocêncio II, sendo uma das principais razões
invocadas o excessivo apoio que este último dava aos monges apostólicos. Toledo
e Compostela estão a alinhar contra Inocêncio II! Um mosteiro apostólico em
Coimbra vai erguer contra nós a ira dos leoneses! Afonso VII, vosso primo,
apoia Anacleto. Quereis que o Antipapa obrigue Coimbra a uma nefasta submissão
a Toledo?» In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das
Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, História, Literatura, A Arte,