«(…) Canning tinha modos grandiosos algo contidos, talvez para combinar com os seus modestos papéis públicos. Eu percebi o cabelo ondulado, delicadamente repartido, e lábios carnudos húmidos e uma fendinha no meio do queixo, que eu achei bonitinha porque dava para ver, até com aquela luz ruim, que ele tinha dificuldade para fazer a barba direito. Uns pelos escuros ingovernáveis se projectavam do sulco vertical na pele. Era um homem bonito. Quando as apresentações acabaram, Canning me fez algumas perguntas, sobre mim. Eram coisas educadas e bem inocentes, sobre o meu curso, Newnham, o diretor, que era grande amigo dele, a minha cidade, a catedral. Jeremy entrou na conversa com umas amenidades e aí Canning também o interrompeu para agradecer por ele ter mostrado os meus últimos três artigos na ?Quis? Ele se voltou novamente para mim. Uns textinhos excelentes. Você tem talento, querida. Você quer entrar para a imprensa?
A
?Quis? era um pasquim de estudantes, que não pretendia ser lido por gente
séria. Fiquei agradecida pelas palavras generosas, mas era novinha demais para
saber aceitar um elogio. Resmunguei alguma coisa modesta, mas pareceu que eu não
estava levando aquilo a sério, e aí eu tentei me corrigir de um jeito meio
atabalhoado e fiquei toda afobada. O professor ficou com pena de mim e nos
convidou para um chá e nós aceitamos, ou Jeremy aceitou. E assim nós fomos atrás
de Canning, voltando pelo mercado, na direcção da faculdade em que ele
trabalhava.
Os
aposentos dele eram menores, mais encardidos e mais caóticos do que eu
esperava, e fiquei surpresa ao ver ele fazer tudo errado com o chá, mal enxaguando
as canecas lascadas e manchadas de marrom e derramando a água quente de uma
chaleira eléctrica imunda em cima dos livros e dos papéis. Ele sentou-se atrás
da escrivaninha, nós sentamos em poltronas e ele continuou a fazer perguntas.
Parecia um encontro de orientação académica. Agora que eu estava roendo os seus
biscoitinhos de chocolate Fortnum & Mason, me sentia obrigada a responder
em mais detalhes. O Jeremy estava-me encorajando, balançando a cabeça que nem
um bobo com tudo que eu dizia. O professor perguntou dos meus pais, e de como
tinha sido crescer à sombra de uma catedral, eu disse, espirituosamente, eu
achei, que não havia sombra porque a catedral ficava ao norte da nossa casa. Os
dois homens riram e eu fiquei pensando se a minha piada tinha insinuado mais do
que eu tinha entendido. Nós passámos às armas nucleares e às propostas do
Partido Trabalhista, de um desarmamento unilateral. Fiquei repetindo uma frase
que eu li em algum lugar, depois percebi que era um clichê. Depois de solto é
impossível botar o génio de volta na garrafa. As armas nucleares teriam de ser
gerenciadas, e não proibidas. Fim do idealismo da juventude. A bem da verdade,
eu não tinha grandes opiniões a respeito. Noutro contexto, teria falado a favor
do desarmamento nuclear. Teria negado, mas estava tentando agradar, dar as respostas
certas, ser interessante. Gostava do jeito de Tony Canning se inclinar para a
frente quando eu falava, o seu sorrisinho de aprovação me encorajava, esticando
mas sem chegar a separar direito aqueles lábios carnudos, e aquele jeito de
dizer Sei ou É isso mesmo... toda a vez que eu fazia uma pausa». In Ian McEwan,
Serena, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-121-2.
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JDACT, Ian McEwan, Literatura, Narrativa,