Coimbra, Páscoa de 1131
«(…) Francês e
antigo cónego na Sé, Bernardo fora nomeado bispo de Coimbra com um propósito:
resistir aos desejos permanentes de hegemonia de Compostela e de Toledo. Ora,
estando Anacleto em vias de vencer o cisma católico, o mosteiro apostólico
apoiado por Afonso Henriques seria uma imprudência infantil! Inocêncio II não
vai perder o papado, contrapôs meu tio Ermígio. Fosse como fosse, alegou o
inflamado bispo, melhor seria que esperassem pela resolução do cisma! Se Inocêncio
acabasse por vencer a luta contra o Antipapa Anacleto, o mosteiro poderia então
ser erguido, pois já não representaria um perigo para Coimbra. Não voltarei com
a minha palavra atrás, afirmou o príncipe.
A doação estava
feita, o documento assinado, diziam-lhe pouco as subtilezas distantes da crise
em Roma. Se Anacleto vencesse e Toledo nos quisesse prejudicar, cá estaríamos
para lutar pelas nossas justas pretensões. Confrontado com esta firmeza, o
bispo Bernardo lançou umas palavras finais reveladoras do seu mau perder: uma
guerra com Toledo e com Roma, só para terdes uma sela? Que terrível tolice,
sois um rapazola! O meu melhor amigo virou costas ao bispo sem lhe ripostar, o
que levou meu tio Ermígio, já nos degraus exteriores da Sé, a gabar-lhe a
serenidade. Aproximando-se da sua montada, Afonso Henriques limitou-se a olhar
para a bonita sela e a exclamar: agora só me falta um cavalo decente!
Era uma das suas
queixas recorrentes, estava sempre insatisfeito com os animais que cavalgava,
que pareciam não ser capazes de o carregar. O meu melhor amigo era um gigante e
quando embainhava a espada de seu pai, que só ele conseguia erguer, juntando-a
ao escudo com que se armara cavaleiro em Zamora, o peso do conjunto era quase
insuportável para os cavalos. Tendes razão, esta pileca não vos serve!, afirmou
Gonçalo. Entretidos com o novo tema, esquecemos prontamente a polémica com o bispo
Bernardo e as implicações do longínquo cisma de Roma. Foi um erro grave, que no
futuro nos iria sair bastante caro. Os inimigos do ainda nascente reino de
Portugal eram muito mais poderosos e numerosos do que pensávamos naqueles dias.
Coimbra, Páscoa de 1131
Mal nos afastámos da Sé, fomos surpreendidos pela aparição
inesperada da princesa Zaida, que saía do edifício pela porta lateral da
biblioteca. Era conhecido o gosto da rapariga pelas leituras e, anos antes, sua
mãe Zulmira chegara a temer que tanto entusiasmo pelos Testamentos fosse uma predisposição
para uma futura mudança de religião. Nada mais longe da verdade: Zaida não
tencionava converter-se a Cristo, tinha era uma curiosidade infinita pelas histórias
de um passado que o Islão e a Cristandade partilhavam. Ao vê-la surgir, Gonçalo
exclamou, animado: Zaida, minha amada, finalmente encontro-vos! É hoje que
casamos? A rapariga desatou a rir e todos nos congratulámos secretamente por vê-la
de novo alegre. Já haviam passado quase dois anos sobre a tenebrosa morte de
sua mãe Zulmira, mas durante muito tempo ninguém vira aquela bonita moura
sorrir. Roliça e vivaça, era dotada de uns olhos negros brilhantes que faziam
estremecer o coração de qualquer homem, e deslocava-se sempre num passo dançarino
e saltitante, que conferia leveza a um corpo bem desenhado e redondo. Simpática,
afável e carinhosa, era uma menina dada a todos, homens e mulheres, mas sabíamos
que nunca fora usada por ninguém, guardando-se como se fosse um tesouro
valioso. E levais-me para Córdova?, ripostou ela». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN
978-989-741-461.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, História, Literatura, A Arte,