1754-1758
«(…) Peço-te calma, meu amor! Peço-te calma!,
ouvi-o gritar, afastado de mim à força. E dobrada sobre o corrimão fiquei a
vê-lo descer a escada até sair a porta lá em baixo, voltando-se antes a
despedir-se, com um demorado olhar triste mas infinitamente frio, onde se
recolhia o brilho acerado do gume de uma ardente faca. Enquanto isto, escondida
atrás de mim, Leonor observava o Pai a ser levado aos empurrões cobardes; foi
ela que me impediu de cair, arrastando-me primeiro para a casa de fora e em
seguida amparando-me até ao quarto onde me deitou na cama gelada. Só bastante
mais tarde me dei conta de ela ter agido não como uma menina de oito anos, mas
como uma mulher. Lembro-me do seu semblante extremamente pálido e de como
tremia ao afastar-me os cabelos da testa encharcada pelo suor frio, ao secar-me
na face as lágrimas constantes, ao compor-me no peito o decote esgarçado da
camisa rasgada.
Na verdade, pouco guardo dos dias e dos meses que se seguiram, estendida na minha cama gelada de mulher solitária a quem abruptamente lhe fora arrancado sem qualquer motivo o homem amado. De seguida, como se não chegasse, num rasto de negrume vieram todas as outras terríveis desgraças a que julguei esquivar-me pelo lado do meu nada, embora continuando viva. E ao despertar das minhas perdições e torpores, estava a cumprir num convento não sei que pena, dentro de uma clausura que não era minha; num tempo do qual pretendi a todo o custo anular os sinais, os anseios, as pegadas, as vertigens.
Escutam-me estas penhas (de Epístola a Tirce)
Escutam-me estas penhas animadas,
Que as expressões do brando sentimento,
Como sonhos de enferma reputadas,
Insultam, por dobrar o meu tormento.
Serve as leis execrandas do meu fado;
Aqui geme o legítimo heroísmo,
De uma falsa razão atormentado.
Raízes
Desembarcados que são da armada da Índia no porto de Lisboa,
beijada a família, afagados os netos que ainda não conheciam e cumprimentados
os fidalgos que os esperam, distrai-se Leonor Távora, demorando o passo, a olhar o céu de Portugal, azul-cobalto
naquela manhã de estio, antes de aceitar a mão
desenluvada de Francisco Assis
para subir os dois degraus da carruagem enviada pela Coroa a fim de os levar ao
Paço. Haviam
partido a caminho da Índia com as despedidas
solenes e a confiança de el-rei dom
João V, entretanto morto, e no regresso deparam-se com a ausência da Corte,
sinal da hostilidade gélida de dom José I entretanto coroado Rei de Portugal, que encontram na companhia do
seu secretário de Estado Sebastião José
Carvalho Melo. Homem baixo, ainda
novo, lábios de lâmina afiada, olhos pequenos, argutos e escuros que neles
se fixam, como se pretendessem ler-lhes a alma; particularmente atento à
marquesa de Távora, que estremece ao sentir a sua atenção fascinada, arrepio a
subir-lhe no corpo delgado vestido de seda natural cor de amora selvagem,
plumas tom da aura dos anjos a temperarem-lhe o toucado com langores
imprudentes». In Maria Teresa
Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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