Rio Nabão, Março de 1120
«(…) Depois de habituar os olhos
à escuridão, a mulher de negro viu no chão uma esteira de vime, em cima da qual
se encontrava deitado um minúsculo e mirrado idoso, que morria devagarinho,
emitindo os inconstantes queixumes que ela escutara. Decidiu esperar que ele
soçobrasse, pois não seria correcto deixá-lo apodrecer no eremitério. Podia
perfeitamente cavar uma pequena cova, enterra-lo e só depois prosseguir o seu
caminho. Ainda à entrada, reparou que o homem parara de gemer. Com os olhos
agora
muito abertos, parecia aterrado,
não já com medo de morrer, mas com medo dela. Era natural, estava vestida de
negro, se calhar o monge deduzira que ela era a Morte que o vinha buscar.
Tentou tranquilizá-lo: não sou a vossa morte. O velho acalmou e ela decidiu
entrar no eremitério. Explicou ao homem que não duraria mais do que umas horas,
e que ela poderia enterrá-lo, para que o corpo não fosse comido pelos bichos. O
monge deve ter gostado de o saber, pois fechou os olhos e fez um pequeno aceno
de cabeça, agradecido. Então, ela sentou-se no canto da esteira e convenceu-se
de que ele tinha decidido morrer, pois não o ouviu gemer durante algum tempo.
Para retirar as suas dúvidas passou a mão sobre o nariz dele, para sentir a
respiração, o que o levou a abrir os olhos. Ainda estais cá, murmurou ela.
Habituara-se a queimar cadáveres,
mas não gostava de os enterrar, nunca sabia se estavam mesmo mortos. – Como
posso ter a certeza da vossa morte? O monge não respondeu e então ela
informou-o de que ia lá para fora abrir a cova, e perguntou-lhe se tinha alguns
utensílios por perto, o que o levou a falar pela primeira vez, apontando para o
canto da sala. Pedra... A mulher de negro viu no chão uma laje rectangular e
comprida, ligeiramente levantada, que cobria um túmulo. É ali que quereis
ficar?, perguntou. O eremita acenou com a cabeça e ela comentou: melhor para
mim, não tenho de cavar a sepultura. O eremita ficou silencioso durante horas,
enquanto ela se deitava a seu lado e dormitava. Já era de noite quando ele
voltou a gemer. Devia estar com muitas dores e o seu fim estava a chegar, mas
de súbito tocou na mulher, que se sentou e aproximou o ouvido da boca dele,
para o tentar compreender. Jerusalém... Uma relíquia... Três homens...
A mulher de negro conseguiu
compor uma curta narrativa. Três homens tinham escondido ali perto uma
relíquia, trazida por um deles de Jerusalém. Este último já morrera, envenenado
por uma rainha numa terra distante. Pai de um novo rei, balbuciou o monge. O
moribundo acrescentou que o segundo homem seria morto por um filho, que cristãos
de branco viriam procurar a relíquia e que o terceiro homem era o mais temível.
De súbito, cada vez mais frágil, disse um nome em latim e apontou para o forno,
onde crepitavam ainda umas brasas. O fogo que queima os corpos... A mulher de
negro assustou-se. Lembrou-se do seu passado e temeu que aquele eremita fosse
um vidente. O novo rei, dizei-lhe a verdade.
Após sussurrar estas últimas
palavras, o monge faleceu e a mulher de negro colocou-o no túmulo depois de o
sangrar com uma faca, para garantir que estava mesmo morto. De seguida, pôs a
laje no lugar, regressou à esteira, deitou-se e adormeceu. Acordou umas horas
depois, já com o dia a nascer, e abandonou o eremitério. Estava um dia de sol,
e ela decidiu fazer o que nunca fazia, retirou o capuz para aquecer o rosto, e
cerca de duas léguas à frente, na direcção de Coimbra, cruzou-se de repente com
um cavaleiro, que lhe perguntou se sabia onde ficava um eremitério. Quando ele
partiu, teve um súbito e estranho pressentimento e correu a esconder-se nuns
penedos. Algum tempo mais tarde, o cavaleiro reapareceu à procura dela, a
passo. Era evidente que fora ao eremitério, descobrira o monge morto e agora
queria saber o que ele dissera à mulher.
Quando me descreveu estes
eventos, Mem garantiu que a bruxa fora cautelosa e, por precaução, se mantivera
invisível até o desconhecido partir. Várias horas depois ainda duvidava de si
própria, relatou Mem. Qual o motivo daquele estranho susto que a levara a
esconder-se? Porque lhe tremiam as mãos? Estaria outra vez louca? Eram
perguntas para as quais só tivemos resposta muitos anos depois, quando tudo se
tornou mais claro, quando descobrimos quem era o terceiro homem, o que era a
relíquia e onde estava escondida. Deus deu à bruxa as chaves das Portas do
Inferno, mas não o poder de as abrir.
1126
Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126
Jumenta, pensou a minha prima
Raimunda quando viu aquela linda galega atravessar o pátio, em frente da igreja
de Viseu. Aos dezassete anos, a minha prima continuava a mesma magricela de
sempre, quase não se distinguindo de um rapazola. O meu tio Ermígio dizia-lhe
para não se comparar, mas sempre que via uma rapariga bonita o mundo fugia debaixo
dos pés da minha pobre prima». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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