domingo, 30 de maio de 2021

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «… para onde vão levar o senhor marquês de Alorna, meu marido? Ao que o desembargador respondeu com uma mentira e de olhos no chão: para o Pátio dos Bichos na Quinta do Meio…»

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1754-1758

«(…) Pavores que pressinto na correnteza de terrores sentidos tão continuamente que me parece delírio, chegando a levantar-me vezes sem conta da cadeira em que estou assentada, na minha casa, para ir ao oratório dar este recado ao Senhor Crucificado, que nele se encontra: Senhor! Salvação do conde de Atouguia, seja como for! E isto me acontece vendo este tão moço e com boa saúde; ao menos não tendo nele cousa em que temesse perigo. A tentar não me lembrar continuamente dos profetas da desgraça que neste ano de 1758 pululam em Lisboa, escanzelados, esfarrapados, sujos, olhar iluminado pela alucinação e o desvario, impelidos pelo gosto da crueldade em falas de perdição e loucura.

Na sua sombra escondem-se as serpentes e agem as nigromantes, as benzedeiras e as bruxas, arrastando estas as bainhas desfeitas das saias pela imundície das ruas. Nos sacos e nos alforges carregam as pedras medradas no veneno, escondem as cartas de adivinhação, as bolas de cristal polidas pelo afago dos dedos no adestrar de espelho e na abordagem dos mundos exauridos do além, no contacto lívido com os espíritos. De onde partem, diz-se, os mais desalmados vaticínios, que logo circulam por ruas e becos e colinas, até mesmo por entre as ruínas deixadas pelo terramoto, onde prosperam o negrume brilhante da beladona e os agrestes frios do Inverno, ventos de gume em riste entristecendo e assustando a cidade atascada de lama e mau olhado, inundada por medos e pavores desde o tremor de terra. Superstições colhidas na ignorância, comenta com austeridade minha mãe dona Leonor Távora, quando lhe relato com pinceladas de obscuridade as imagens cruéis, violentas e desgraçadas. De igual modo se referiu ontem a elas a condessa de Óbidos, gracejando acerca da última predicção escutada, fingindo eu esquivar-me de levar a sério a sua narração, mas a perder-me já na cerração que logo me obscureceu a alma.

Vaticínios anunciados por esquálidos profetas da desgraça, de cima de improvisados púlpitos, pedregulhos mais altos encontrados nos monturos que juncam as ruas cruzadas em torno do pouco que agora resta do Terreiro do Paço: sangue de mártires, de fidalgos e senhoras vão correr em breve para os lados de Belém, num Janeiro de eclipse, de ventanias e tempestades, a encharcarem as madeiras verdes do cadafalso e as terras, as areias junto do rio, mais tarde manchadas pelas lágrimas e o vermelho dos sangues.

Vi sair meu marido escoltado pela tropa quando o vieram buscar ao fim da madrugada, estávamos ainda recolhidos. Eu às voltas na cama sem descansar, peito oprimido por uma aflição para a qual não encontrava motivo, cuidando em não incomodar João que a meu lado dormia mergulhado no sono pesado do sossego, embalado pela tranquilidade que até àquele momento fazia todo o sentido. Mas o grande ruído vindo do pátio, junto ao portão da entrada e debaixo da nossa janela, acordou-o, sobressaltado, e sem nada entendermos tomados por pressentimentos sombrios. E logo ele me empurrou com brusquidão dos seus braços, ordenando num tom de voz ríspido, que até àquele instante não lhe conhecia: vai ver das crianças e não as largues.

Assustada, passei à casa de fora, para de seguida ir correndo a tropeçar na camisa comprida, touca com entremeios de renda e folho estreito a escorregar ao longo dos meus cabelos, que já tombavam soltos e desordenados pelas costas. Afastando-me apesar de preferir ficar, temendo sem saber porquê que viessem buscar João, e à conta desse temor lhe obedeci, enquanto escutava o tropel das botas dos soldados subindo a escadaria de mármore à sua procura, sala após sala, até o acharem a vestir-se, a fim de poder enfrentar de modo decente o que pudesse vir a acontecer-nos.

Sem saber o que fazer, tirava Pedro da pequena cama, bracejando ensonado, quando senti Leonor a puxar-me pela manga convocando-me para a sua lividez de cal, os olhos azulados cheios de perguntas, enquanto Maria, descalça e tremendo de medo, se agarrava à minha cintura. Entreguei Pedro à ama assim como as meninas, e estava de volta ao corredor com intenção de regressar ao quarto de onde nunca devia ter saído quando o desembargador Eusébio Tavares, que nesse dia 13 de Setembro de 1758 iria deter igualmente meus irmãos e o marquês de Atouguia meu cunhado, aparecendo ao meu lado a embargar-me o passo, sem palavras mostrou-me a ordem real que o autorizava a prender meu marido, assinada pela rainha dona Mariana Vitória, que governava enquanto el-rei José I se curava das feridas resultantes do atentado até à data mantido secreto e cometido na noite de três de Setembro contra a sua pessoa. Segundo o desembargador, a rainha ordenava-me, tal como aconteceria com a condessa de Atouguia, minha irmã Mariana Bernarda, a ficar detida na própria casa.

Não tendo coragem na altura para objectar fosse o que fosse, limitei-me a indagar num fio de voz: para onde vão levar o senhor marquês de Alorna, meu marido? Ao que o desembargador respondeu com uma mentira e de olhos no chão: para o Pátio dos Bichos na Quinta do Meio, senhora marquesa, onde já se encontram outros membros da vossa família.

Recuei assustada, mas ao ver João rodeado e manietado pela guarda armada lancei-me num soluço ferido, e afastando os surpreendidos soldados agarrei-me a ele, anelando-me no ninho do seu peito, braços em laço apertado em redor do seu pescoço, sem nenhuma noção do pudor que me devia, outra coisa não sentindo senão aquele desespero inteiro que aos borbotões me transbordava do rasgão aberto no cerne da vida». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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