1754-1758
«(…) Pavores que pressinto na correnteza de
terrores sentidos tão continuamente que me parece delírio, chegando a levantar-me vezes
sem conta da cadeira em que estou assentada, na minha casa, para ir ao oratório
dar este recado ao Senhor Crucificado, que nele se encontra: Senhor! Salvação
do conde de Atouguia, seja como for! E isto me acontece vendo este tão moço e
com boa saúde; ao menos não tendo nele cousa em que temesse perigo. A tentar não me lembrar continuamente
dos profetas da desgraça que neste ano de 1758 pululam em Lisboa, escanzelados,
esfarrapados, sujos, olhar iluminado pela alucinação e o desvario, impelidos
pelo gosto da crueldade em falas de perdição e loucura.
Na sua sombra escondem-se as serpentes e agem as
nigromantes, as benzedeiras e as bruxas, arrastando estas as bainhas desfeitas
das saias pela imundície das ruas. Nos sacos e nos alforges carregam as pedras
medradas no veneno, escondem as cartas de adivinhação, as bolas de cristal
polidas pelo afago dos dedos no adestrar de espelho e na abordagem dos mundos
exauridos do além, no contacto lívido com os espíritos. De onde partem, diz-se,
os mais desalmados vaticínios, que logo circulam por ruas e becos e colinas,
até mesmo por entre as ruínas deixadas pelo terramoto, onde prosperam o negrume
brilhante da beladona e os agrestes frios do Inverno, ventos de gume em riste
entristecendo e assustando a cidade atascada de lama e mau olhado, inundada por
medos e pavores desde o tremor de terra. Superstições colhidas na ignorância,
comenta com austeridade minha mãe dona Leonor Távora, quando lhe relato com
pinceladas de obscuridade as imagens cruéis, violentas e desgraçadas. De igual
modo se referiu ontem a elas a condessa de Óbidos, gracejando acerca da última
predicção escutada, fingindo eu esquivar-me de levar a sério a sua narração,
mas a perder-me já na cerração que logo me obscureceu a alma.
Vaticínios anunciados por esquálidos profetas da desgraça,
de cima de improvisados púlpitos, pedregulhos mais altos encontrados nos
monturos que juncam as ruas cruzadas em torno do pouco que agora resta do Terreiro
do Paço: sangue de mártires, de fidalgos e senhoras vão correr em breve para os lados de
Belém, num Janeiro de eclipse, de ventanias e tempestades, a encharcarem as
madeiras verdes do cadafalso e as terras, as areias junto do rio, mais tarde
manchadas pelas lágrimas e o vermelho dos sangues.
Vi sair meu marido escoltado pela tropa quando o vieram
buscar ao fim da madrugada, estávamos ainda recolhidos. Eu às voltas na cama
sem descansar, peito oprimido por uma aflição para a qual não encontrava motivo,
cuidando em não incomodar João que a meu lado dormia mergulhado no sono pesado
do sossego, embalado pela tranquilidade que até àquele momento fazia todo o
sentido. Mas o grande ruído vindo do pátio, junto ao portão da entrada e
debaixo da nossa janela, acordou-o, sobressaltado, e sem nada entendermos
tomados por pressentimentos sombrios. E logo ele me empurrou com brusquidão dos
seus braços, ordenando num tom de voz ríspido, que até àquele instante não lhe
conhecia: vai ver das crianças e não as largues.
Assustada, passei à casa de fora, para de seguida ir
correndo a tropeçar na camisa comprida, touca com entremeios de renda e folho
estreito a escorregar ao longo dos meus cabelos, que já tombavam soltos e
desordenados pelas costas. Afastando-me apesar de preferir ficar, temendo sem
saber porquê que viessem buscar João, e à conta desse temor lhe obedeci,
enquanto escutava o tropel das botas dos soldados subindo a escadaria de
mármore à sua procura, sala após sala, até o acharem a vestir-se, a fim de poder
enfrentar de modo decente o que pudesse vir a acontecer-nos.
Sem saber o que fazer, tirava Pedro da pequena cama,
bracejando ensonado, quando senti Leonor a puxar-me pela manga convocando-me
para a sua lividez de cal, os olhos azulados cheios de perguntas, enquanto
Maria, descalça e tremendo de medo, se agarrava à minha cintura. Entreguei
Pedro à ama assim como
as meninas, e estava de volta ao corredor com intenção de regressar ao quarto
de onde nunca devia ter saído quando o desembargador Eusébio Tavares, que nesse
dia 13 de Setembro de 1758 iria deter igualmente meus irmãos e o marquês de
Atouguia meu cunhado, aparecendo ao meu lado a embargar-me o passo, sem palavras mostrou-me a ordem real que o autorizava a prender
meu marido, assinada pela rainha dona Mariana Vitória, que governava enquanto
el-rei José I se curava das feridas resultantes do atentado até à data mantido
secreto e cometido na noite de três de Setembro contra a sua pessoa. Segundo o
desembargador, a rainha ordenava-me, tal como aconteceria com a condessa de
Atouguia, minha irmã Mariana Bernarda, a ficar detida na própria casa.
Não tendo coragem na altura para
objectar fosse o que fosse, limitei-me a indagar num fio de voz: para onde
vão levar o senhor marquês de Alorna, meu marido? Ao que o desembargador
respondeu com uma mentira e de olhos no chão: para o Pátio dos Bichos na
Quinta do Meio, senhora marquesa, onde já se encontram outros membros da vossa
família.
Recuei assustada, mas ao ver João rodeado e manietado pela guarda
armada lancei-me num soluço ferido, e afastando os surpreendidos soldados
agarrei-me a ele, anelando-me no ninho do seu peito, braços em laço apertado em
redor do seu pescoço, sem nenhuma noção do pudor que me devia, outra coisa não
sentindo senão aquele desespero inteiro que aos borbotões me transbordava do
rasgão aberto no cerne da vida». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor,
Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
Cortesia de PdQuixote/JDACT
JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, Saber, Cultura,