Highgate Cemetery,2005
«Se
a pátria assinalar uma pessoa como um cão assinala um candeeiro, a minha
condição de portuguesa transporá os portões antes de mim e uma espécie de aviso
subirá, fazendo com que as aves estremeçam. A lembrança do outro português que
uma noite aqui veio abrir a campa pode ser acordada pelos meus passos?
Conhecerá a terra o parentesco que liga a minha carne à carne dele, uma
composição de sol e enchidos, de subserviência e fantasia? Esta não é a hora
das visitas. Erguendo os olhos para a subida, vejo que a hostilidade do lugar
levanta, exactamente como um nevoeiro. Precisa de repouso, a terra, e
engana-se, supondo que fechou a sua entrada. No interior do círculo, estou eu.
Passo furtivamente, receando que alguma identidade, não a minha, mas a do meu
país, informe os mortos. O tempo andou aqui com o seu peso, esmagou, quebrou os
selos. As encostas abriram fendas. E os caminhantes que parecem rezar dizem apenas
em voz baixa a si próprios que a camada do solo superior ainda os protege,
ainda isola os seus pés. Que não há perigo de comunicação.
O
que está lá no fundo é transtornado pela luz, pelo ar onde circulam pequenas
formações da biologia. Os roedores conhecem com certeza modos de comportar-se
quando encontram esse súbito vácuo. Mas nós não. Um piedoso corte quebra a
linha que vai dos olhos para o pensamento. E os turistas refugiam-se no grupo,
amparam-se no braço do vizinho, antecipando algum desequilíbrio. Há um
princípio de obscenidade que logo se recolhe sobre si. Se falam sobre Drácula,
já baixam ligeiramente a voz. Mas incomodam. Têm um calor próprio, uma espantosa
intensidade metabólica. Interpõem-se. Por isso eu espero que eles se retirem,
que tomem o caminho para a vila, levando tudo o que não quero aqui, a carne, os
seus recursos de alegria.
Eu
venho a um encontro pessoal, desses que não consentem testemunhas. Na verdade,
conheço esta mulher. Não a criei. Sei mais a seu respeito do que sei sobre as
minhas personagens. Pisei já muito chão que ela pisou, toquei em coisas onde
teve as mãos. Dormi junto a lugares onde dormiu. Nada dela me é estranho. De
algum modo, as nossas vidas já se confundiram pois o tema do duplo, o doppelganger,
estava inscrito em nós como um padrão. Se subo agora o matagal da encosta não é
porque me falte o seu horror. É que, tornando-se isto numa história, precisarei
de uma noção de fim. À cripta dos Rossetti não se acede de modo confortável. Eu
não sei se o teixo que a ensombra é ainda o mesmo que foi plantado para o
primeiro enterro. Os teixos são longevos, isso é certo. As inscrições nas
lápides mantêm os nomes dos seus mortos bem legíveis. A humidade inglesa não foi
tão implacável como é do seu costume. As chuvas deslizaram pelas pedras como se
as respeitassem. Com excepção da que assinala Lizzie. O texto que o buril
afundou nela ganhou alguma qualidade orgânica. Águas e águas se depositaram,
chamando os musgos para a reprodução. Está deitada na terra, a sua laje, muito
verde, marcando uma diferença na família que nunca foi a sua. Apesar de
italianos, os Rossetti podiam dar lições de frieza aos londrinos, em especial
no modo de tratar noras indesejadas. O único Rossetti que a amou, e, ainda
assim, de singular maneira, foi sepultado longe, frente ao mar. Não quis que o
enterrassem junto dela. Tinha a certeza de que não se morre e não era a certeza
dos cristãos». In Hélia Correia, Adoecer, Relógio D’Água Editores, 2010, ISBN
978-989-641-160-2.
Cortesia de RD’Água/JDACT
JDACT, Hélia Correia, Literatura,