«(…) Não era bem amor, era uma fascinação, uma embriaguez, uma destas doenças que exercem no cérebro a sua acção paralisadora. Margarida que nenhuma força superior tentava dominar, dera expansão completa a todos os caprichos da sua colorida e quente fantasia. Adorava o luxo, as coisas de arte, a música, as flores raras, frequentava muito o alto mundo onde era requestadíssima, vivia na perpétua idolatria de si própria, que a pouco e pouco a inutilizava para os graves deveres da vida. Tadeu no meio da sua cega e embrutecedora adoração obedecia-lhe como um escravo. Só ele sabia as despesas colossais, as extravagâncias principescas daquela pequenina pessoa, activa, graciosa, fantasista como um poeta oriental.
Mas
economizava ridiculamente em todas as verbas, para que ela, a rainha, a pérola,
a Margarita dos seus sonhos doutro tempo não franzisse um minuto a sua testa
curta, a sua testa de teimosa, na contrariedade de um desejo insaciado. E ela
estava tão habituada à submissão e à humildade daquele pária, que o tratava
como um traste, um objecto seu, com o qual não tinha de mostrar o mínimo constrangimento, a mínima atenção
afectuosa. Tadeu, quero isto! Tadeu, quero aquilo! Tadeu, vi hoje na loja de F.
um adereço de um conto de réis. Se o não mandar buscar até amanhã vendem-no. Eu
quero-o. Não me deixes ficar sem ele. Fazias-me chorar!
Não lhe
pedia a lua como em outro tempo, mas quantas vezes lhe pedia coisas quase tão
inacessíveis como a lua! Margarida tinha dois filhos. Um menino e uma menina.
Dois querubins. Mais meigos do que a mãe nunca fora, mais dóceis, mais
tranquilos, tendo no olhar a serenidade melancólica do olhar do seu pai! Tadeu
envelhecido, de uma velhice precoce que assombrava os que o tinham conhecido na
infância, tinha por essas duas crianças um louco amor de avô. Aqueles quatro
seres eram a sua vida. Fundia-os a todos na mesma adoração apaixonada e tímida.
Vivia deles e para eles.
Henrique
era o seu respeito. Margarida o ídolo do seu passado, os dois querubins louros,
a única esperança suave do seu futuro. Sacrificar-se, esquecer-se, abnegar de
si, eis o modo obscuro e sublime pelo qual ele sabia querer! Mas os dois
pequeninos que não eram turbulentos nem cruéis, tinham nas suas caricias
inconscientes o bálsamo poderoso, o bálsamo divino para as chagas ocultas
daquele coração que a vida ulcerara tanto e tanto.
Desde
algum tempo que Tadeu andava inquieto. Com o seu faro finíssimo de rafeiro fiel
pressentia no ar um perigo desconhecido, alguma coisa de misterioso e de
sinistro, que ouvia rugir ao longe como no fundo de uma voragem. Na aparência
todos viviam tranquilos: Henrique sempre bom, sério, pensativo, de uma indulgência
de forte, de uma doçura de herói. Margarida sempre buliçosa, inquieta, cheia de
desejos infantis, de caprichos, de alegrias ruidosas ou de melancolias súbitas
que ás vezes no silêncio da sala fofa e discreta pareciam a Tadeu um grito de
alarme na monotonia do deserto. As criancinhas... Sempre os seus mais doces
amores, aqueles de que nunca lhe proviera uma amargura. Quando Tadeu pensava
que podia uma fatalidade qualquer separá-lo dos seus dois anjos, desatava a
chorar como um perdido na solidão do seu quarto.
Ele
estava sentado ao pé da mesa. Primeiro estivera fazendo contas, as despesas da
casa, agora pendia-lhe a cabeça embevecido num vago pensamento. Sem saber
explicar porquê, naquele dia lembravam-lhe tantas coisas do seu passado!... Sentia
dentro de si uns vagos assomos de revolta, lembrando-se das humilhações que
padecera, dos tratos com que lhe tinham enfraquecido o corpo e atrofiado a
inteligência. Depois... Na sua vida, até ali obscura e dolorosa, surgia de repente
envolta nas rendas brancas do seu berço uma visão deliciosa, uma pequena fada,
a sua amiguinha, a sua Margarida f... Como fora feliz com ela e por amor
dela... Contudo... Pensando bem... Para essa felicidade quimérica fora ele quem
fornecera todos os elementos. Ela nunca vira no pobre Tadeu senão um
instrumento dos seus caprichos, um escravo das suas vontades... Em todas as
delícias com que dourara a sua vida não havia uma só que fosse nascida da
vontade de ser-lhe boa, útil, consoladora!... E verdade, murmurava o pobre
doudo, é verdade! Ela nunca teve coração! E suspendeu se como que aterrado
daquela blasfémia». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos
Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências
de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História
Verdadeira, Wikipedia.
Cortesia de LLivros/JDACT
Academia das Ciências de Lisboa, Contos, JDACT, Maria Amália Vaz de Carvalho,