domingo, 16 de maio de 2021

Contos e Fantasias Maria Amália Carvalho. «Quando Tadeu pensava que podia uma fatalidade qualquer separá-lo dos seus dois anjos, desatava a chorar como um perdido na solidão do seu quarto»

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«(…) Não era bem amor, era uma fascinação, uma embriaguez, uma destas doenças que exercem no cérebro a sua acção paralisadora.  Margarida que nenhuma força superior tentava dominar, dera expansão completa a todos os caprichos da sua colorida e quente fantasia. Adorava o luxo, as coisas de arte, a música, as flores raras, frequentava muito o alto mundo onde era requestadíssima, vivia na perpétua idolatria de si própria, que a pouco e pouco a inutilizava para os graves deveres da vida. Tadeu no meio da sua cega e embrutecedora adoração obedecia-lhe como um escravo. Só ele sabia as despesas colossais, as extravagâncias principescas daquela pequenina pessoa, activa, graciosa, fantasista como um poeta oriental.

Mas economizava ridiculamente em todas as verbas, para que ela, a rainha, a pérola, a Margarita dos seus sonhos doutro tempo não franzisse um minuto a sua testa curta, a sua testa de teimosa, na contrariedade de um desejo insaciado. E ela estava tão habituada à submissão e à humildade daquele pária, que o tratava como um traste, um objecto seu, com o qual não tinha de mostrar o mínimo constrangimento, a mínima atenção afectuosa. Tadeu, quero isto! Tadeu, quero aquilo! Tadeu, vi hoje na loja de F. um adereço de um conto de réis. Se o não mandar buscar até amanhã vendem-no. Eu quero-o. Não me deixes ficar sem ele. Fazias-me chorar!

Não lhe pedia a lua como em outro tempo, mas quantas vezes lhe pedia coisas quase tão inacessíveis como a lua! Margarida tinha dois filhos. Um menino e uma menina. Dois querubins. Mais meigos do que a mãe nunca fora, mais dóceis, mais tranquilos, tendo no olhar a serenidade melancólica do olhar do seu pai! Tadeu envelhecido, de uma velhice precoce que assombrava os que o tinham conhecido na infância, tinha por essas duas crianças um louco amor de avô. Aqueles quatro seres eram a sua vida. Fundia-os a todos na mesma adoração apaixonada e tímida. Vivia deles e para eles.

Henrique era o seu respeito. Margarida o ídolo do seu passado, os dois querubins louros, a única esperança suave do seu futuro. Sacrificar-se, esquecer-se, abnegar de si, eis o modo obscuro e sublime pelo qual ele sabia querer! Mas os dois pequeninos que não eram turbulentos nem cruéis, tinham nas suas caricias inconscientes o bálsamo poderoso, o bálsamo divino para as chagas ocultas daquele coração que a vida ulcerara tanto e tanto.

Desde algum tempo que Tadeu andava inquieto. Com o seu faro finíssimo de rafeiro fiel pressentia no ar um perigo desconhecido, alguma coisa de misterioso e de sinistro, que ouvia rugir ao longe como no fundo de uma voragem. Na aparência todos viviam tranquilos: Henrique sempre bom, sério, pensativo, de uma indulgência de forte, de uma doçura de herói. Margarida sempre buliçosa, inquieta, cheia de desejos infantis, de caprichos, de alegrias ruidosas ou de melancolias súbitas que ás vezes no silêncio da sala fofa e discreta pareciam a Tadeu um grito de alarme na monotonia do deserto. As criancinhas... Sempre os seus mais doces amores, aqueles de que nunca lhe proviera uma amargura. Quando Tadeu pensava que podia uma fatalidade qualquer separá-lo dos seus dois anjos, desatava a chorar como um perdido na solidão do seu quarto.

Ele estava sentado ao pé da mesa. Primeiro estivera fazendo contas, as despesas da casa, agora pendia-lhe a cabeça embevecido num vago pensamento. Sem saber explicar porquê, naquele dia lembravam-lhe tantas coisas do seu passado!... Sentia dentro de si uns vagos assomos de revolta, lembrando-se das humilhações que padecera, dos tratos com que lhe tinham enfraquecido o corpo e atrofiado a inteligência. Depois... Na sua vida, até ali obscura e dolorosa, surgia de repente envolta nas rendas brancas do seu berço uma visão deliciosa, uma pequena fada, a sua amiguinha, a sua Margarida f... Como fora feliz com ela e por amor dela... Contudo... Pensando bem... Para essa felicidade quimérica fora ele quem fornecera todos os elementos. Ela nunca vira no pobre Tadeu senão um instrumento dos seus caprichos, um escravo das suas vontades... Em todas as delícias com que dourara a sua vida não havia uma só que fosse nascida da vontade de ser-lhe boa, útil, consoladora!... E verdade, murmurava o pobre doudo, é verdade! Ela nunca teve coração! E suspendeu se como que aterrado daquela blasfémia». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/JDACT

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