«(…) Das margens do Tejo troava já nessa altura uma gritaria infrene. E ela foi crescendo à medida que o cortejo, entretanto formado, se deslocava lentamente do local da celebração eucarística para o cais de embarque, num percurso aproximado de quinhentos passos. À frente seguiam o arcebispo com a cruz de ferro e um jovem fidalgo com o estandarte branco e carmesim dos Cavaleiros da Ordem de Cristo, benzido na oblação pelo arcebispo Martinho; logo atrás, enquadrado por dezenas de pajens vestidos de veludo e seda púrpura, caminhava el-rei Manuel I de espada à cinta e na cabeça desgrenhada a coroa de ouro embutida a diamantes e outras pedras preciosas; na esteira do soberano, por ordem de importância, marchavam o embaixador Tristão Cunha, o orador Diogo Pacheco, o magistrado João Faria, o moço de escrivaninha Garcia Resende, o guarda do elefante, Nicolau Faria, e os capitães e capitães-mor das cinco naus. Os filhos de Tristão Cunha, Nuno, Simão e Pero Vaz, os consignatários do alto clero convidados pelo imperante, os amados nobres de Sua Alteza e os restantes membros da comitiva à cúria romana, num total de duzentos, completavam o desfile cuja chegada ao cais foi saudada pela multidão em delírio, soltando berros à desgraça e à alegria, vivas ao rei e ao papa e, como de costume, morras aos judeus e aos hereges. Uma salva de artilharia, mandada disparar pelo almirante-mor do reino, marcou a chegada do cortejo ao molhe onde Sua Alteza, arrebatado por um sentimento de felicidade jamais sentida, procedeu à entrega do estandarte ao comandante da esquadra.
Que o vento vos leve e o vento
vos traga na santa paz de Deus!, disse o rei no momento em que depositava o
pavilhão nas mãos do oficial. E, comovido, acrescentou: tenho a certeza de que
esta não será a viagem mais audaciosa das que já haveis realizado até hoje; mas
é seguramente uma das mais notáveis, senão mesmo a mais notável das que empreendestes
como marinheiro. Carregado de orgulho e de vaidade, o capitão ajoelhou-se aos pés
do soberano, beijou-lhe as botas enlameadas, voltou a aprestar-se e respondeu num
tom forte, definitivo: obrigado, meu senhor, pela honra de me haverdes
escolhido para comandar a flotilha. E juro por Deus, aqui mesmo, em nome do
vosso interesse e dos interesses de Portugal, fazer chegar sem mácula à cúria
de Roma todos os bens que decidistes enviar a Sua Santidade. Deus vos ouça,
bem-aventurado capitão!, acrescentou o rei, enquanto olhava para o interior da
nau que transportava o elefante.
Ele está a ouvir-nos, garantiu o
arcebispo, à parte, em voz baixa. Sob o clamor torrencial da caterva cada vez
mais histérica, exuberante, Manuel I despediu-se de todos, um por um, com
solenidade e distanciamento, deixando para último o seu amigo dom Diogo Pacheco
a quem, como de costume, estreitou o corpo num abraço intenso e breve. Tão breve
quanto o tempo que levou a segredar-lhe: quando regressardes, não vos esqueçais
de trazer essa Raquel, a judia vossa amiga, à minha corte. Gostava de a
conhecer. Diogo Pacheco não sorriu, nem respondeu. Apenas curvou a cabeça e
disse com ar sério, num tom quase sumido: que Deus vele pela vossa saúde, meu
rei e meu senhor! Meia hora mais tarde, já o monarca tinha aliviado a cabeça da
pesada coroa e a comitiva se acomodado no ventre infecto das naus, foi dada a ordem
de partida pelo capitão da esquadra, no tombadilho da proa do primeiro navio: afastar
pranchas das escotilhas, gritou. As pranchas foram afastadas. Soltar amarras,
largar velas, voltou a berrar com mais vigor, ainda. As amarras foram soltas. Uma
nova salva de artilharia, a que sucedeu o toque dos sinos de todos as igrejas
da cidade, marcou o fim da cerimónia em terra. Do sudoeste levantara-se,
entretanto, um vento forte e frio como punhais. Eram onze horas da manhã». In
José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN
978-989-555-364-8.
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