terça-feira, 11 de maio de 2021

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «O capitão do navio, que ouvira a conversa, sugeriu: se não encontrarmos uma galé entre aqui e a primeira terra avistada, vamos amarrá-lo na âncora e baixá-lo com ela»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

A chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491

«(…) Mas eu não estava morto, embora, por muitos dias e muitas noites após deixar Las Conchas, tivesse desejado estar. Os soldados em pouco tempo dispersaram a multidão que se juntara do lado de fora da propriedade de dom Vicente Alonzo Carbazón. Então o tenente deu um puxão na ponta da corda e me arrastou para fora do portão e através da estrada. Seus soldados nos seguiram, dando-me chapadas e chutos o caminho todo na direcção da zona portuária até encontrarem o navio no qual compraram passagens. Gostaria de não ter de me preocupar em procurar uma galé para levá-lo como escravo, comentou o tenente, quando tropecei e caí ao subirmos a prancha. Não quero esse tipo de escória comigo quando nos juntarmos aos exércitos do rei e da rainha. Podemos jogá-lo ao mar com o lixo, quando deixarmos o porto, sugeriu um dos soldados. O tenente grunhiu.

Talvez o cadáver flutue até à praia e revele o que fiz. Não arriscarei enfurecer aquele magistrado, caso ele descubra que matei o rapaz após ele decidir que a sua vida seria poupada. O capitão do navio, que ouvira a conversa, sugeriu: se não encontrarmos uma galé entre aqui e a primeira terra avistada, vamos amarrá-lo na âncora e baixá-lo com ela. Deu uma piscadela. Podemos dizer que ele ficou preso na corda e foi arrastado por cima da murada. Ele me agarrou pelo cabelo, puxou-me pelo convés e me arremessou para o interior de um dos porões, onde caí violentamente, batendo braços, pernas e a cabeça contra fardos e caixas de carga, até parar sobre um chão de madeira maciça. Mal havia recuperado o fôlego quando a abertura foi trancada e a luz se extinguiu. Aquele era um novo terror para mim. Eu nunca estivera numa escuridão total; o sangue aumentou repentinamente atrás dos meus olhos enquanto tacteava loucamente com os braços estendidos para encontrar algo para me apoiar. O navio estremeceu quando os marinheiros se prepararam para partir. Subitamente o mundo se movimentou debaixo dos meus pés e o universo inteiro deslizou. Minha mente se agitou, pois eu nunca estivera num barco. As velas rangeram, e começamos a deixar o porto.

Quando o vento aumentou, as ondas nos arrebataram e a espinha do navio arqueou contra o mar. Aterrorizado pelo poder primitivo dos elementos, fui jogado de um lado a outro, gritando na escuridão, enquanto o navio subia e então caía, era erguido e baixado pela mão de uma criatura gigantesca. Vomitei, emborcando várias e várias vezes, até a ânsia vazia contrair meu estômago com dores excruciantes, e caí no chão, exausto, e permaneci ali, choramingando. Não havia como diferençar luz do dia da escuridão. Privado da visão, os ruídos que eu ouvia soavam altos na minha cabeça, a correria de ratos e os gemidos e rangidos do casco de madeira à medida que este forçava seu caminho pela água. Eu achava que as pranchas rachariam, se fariam em pedaços, e eu seria lançado nas profundezas, e gritava vergonhosamente pela minha mãe e pelo meu pai morto.

E, dentro do fermento de minha mente, eu os vi de novo: minha mãe deixada sozinha, doente e moribunda, e meu pai, o corpo balançando no fim de uma corda. O tempo piorou, o navio se arremessava e ondulava, e os enormes caixotes e fardos da carga começaram a se movimentar. Temia ser esmagado. Rastejei até encontrar um espaço entre as escoras, no qual me enfiei, ao longo das costelas do navio. Ali me segurei enquanto, lá fora, as ondas batiam fazendo estrondos, procurando uma maneira de me esmagar. Permaneci sem me mexer pelo que me pareceu dias, até ficar tão fraco que mal conseguia erguer a cabeça. Foi o soldado ruivo, aquele que mostrara piedade para com meu pai puxando-lhe as pernas para diminuir a sua derradeira agonia, quem, enfim, abriu a escotilha. Uma corda desceu tombando, e ele veio com ela para me dar uma olhada. Então berrou para alguém que estava na parte de cima à espera de informações: ele está vivo! Voltou minutos depois com uma moringa de água.

Por duas vezes, você enganou a morte, afirmou, enquanto abria a minha boca à força e despejava água pela minha garganta abaixo, pois o certo era ter morrido aqui por falta de água. Subiu novamente e voltou com um pedaço de pão e uma pele cheia de um azedo vinho tinto. Quebrando o pão em pedaços, molhava-o no vinho e observava enquanto eu tentava engolir. Grunhiu ao me ajudar a ficar de pé. Talvez você tenha nascido sob uma estrela especial. Uma pequena galé mercante espanhola fora avistada no horizonte. O tenente não se importava se eu estava vivo ou não: mesmo se estivesse semimorto, ele teria me jogado por cima do costado, mas agora via uma possibilidade de me trocar por alguma bebida alcoólica. Um barril de vinho barato foi o quanto eu valia. E, mesmo assim, com relutância. Foi mais com um espírito de apaziguamento que o capitão da galé concordou com a troca, pois os soldados mantiveram suas armas apontadas para o barco menor. Bem afundada na água, sem alojamentos cobertos para os ocupantes, a galé era dotada apenas parcialmente de convés, com um grosseiro pano de vela mastreado como toldo na popa, fechado de ambos os lados para protecção contra a fúria dos elementos.

Havia um canhão de pequeno porte montado na frente, e, embora poucos tripulantes carregassem facas nos cintos, eles seriam facilmente dominados por um navio maior equipado com canhões e homens armados. A negociação foi feita em minutos, e o destino decretou que eu me tornasse um rato de galé. O soldado ruivo foi-me buscar para me fazer subir ao convés. A escotilha se abriu novamente, e o sol brilhou no meu rosto. Olhei para cima com os olhos semicerrados enquanto a corda descia. Se não consegue subir sozinho pela corda, segure na ponta que eu puxo, sugeriu ele, mas não de um modo indelicado. Cambaleei adiante para agarrar a ponta oscilante da corda. Algo cintilou na luz. Presa entre as amarras de um fardo havia uma faca. Era comprida e de lâmina estreita: do tipo que uma mulher usaria para descascar legumes. Posteriormente, descobri que era do tipo usado por funcionários do governo para cortar os cordões durante o processo de afixar o selo da aduana em mercadorias tributáveis. A faca devia ter ficado presa enquanto a carga era inspecionada antes de ser levada para o navio. Alcancei-a, e, num instante, estava em minha mão. Mas onde escondê-la?» In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,