segunda-feira, 24 de maio de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «Chamoa..., murmurou Ramiro, visivelmente atrapalhado. Filho ilegítimo de Paio Soares, dizia-se que de uma soldadeira, apresentava um saiote coçado, calçava umas abarcas e usava umas longas e velhas meias»

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1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Naturalmente, o seu profundo temor era que Afonso Henriques se apaixonasse por outra. Naquela época, quando a revimos, Chamoa Gomes já tinha dezasseis anos e a irmã Maria Gomes, a minha Maria, que, reconheço, não era tão deslumbrante, tinha dezassete. Na corte do Condado Portucalense, as sobrinhas do Trava eram muito pretendidas e havia até quem dissesse que uma delas poderia casar com Afonso Henriques, embora nós duvidássemos, pois o príncipe desprezava o amante da mãe e a sua poderosa família galega. À cautela, logo que as soubera em Viseu, a prima Raimunda decidira vigiar-lhes os passos. Porém, as manas Gomes haviam permanecido dentro de casa, e só naquele momento, em que via finalmente Chamoa, tão radiosa e sedutora, a prima Raimunda sofria.

A rapariga galega era uma poderosa rival, a maior até à data. A sua chegada representava um perigo fatal para aquele encantamento escondido e talvez impossível de Raimunda. Ela e todos nós sabíamos que o príncipe já dormira com soldadeiras, mas que não se afeiçoava a elas. Já uma galeguinha doce, risonha e sardenta como Chamoa entraria pelo coração do seu amado como faca quente em manteiga. Jumenta, pensava sempre a minha pobre prima. De repente, viu um rapaz jovial, um pouco mais velho do que Chamoa, apertado no seu balandrau demasiado justo, aparecer no pátio e dizer-lhe: Chamoa, tendes de vir comigo ao ribeiro da Loba, vamos a cavalo! A rapariga riu-se, aos pulinhos, mas recusou a sugestão: primo, hoje é Sexta-Feira Santa, é pecado pensar nisso!

A família de Toronho havia chegado a Viseu vinda da Galiza, numa pequena comitiva que à prima hora da manhã entrara pelas portas da cidade. Quanto ao seu companheiro de colóquio, era familiar dela pelo lado dos Trava, e não muito distante. Chamava-se Mem Rodrigues Tougues e, pela conversa insinuante, via-se que eram dados ao folguedo, coisa bem habitual entre primos. O duo avançou em direcção à escadaria da igreja, mas uns metros à frente surgiram Ramiro e o pai, que estacaram quando se cruzaram com Chamoa e seu primo.

Chamoa..., murmurou Ramiro, visivelmente atrapalhado. Filho ilegítimo de Paio Soares, dizia-se que de uma soldadeira, apresentava um saiote coçado, calçava umas abarcas e usava umas longas e velhas meias. Sendo um infanção, que não herdaria terra ou castelo, Ramiro vestia-se como um servo pobre, e o contraste com o homem ao seu lado era drástico. Aperaltado numa luxuosa dalmática escarlate, com um belo punhal à ilharga, no topo de cujo cabo se destacava uma pérola, Paio Soares parecia não seu pai, mas seu amo e senhor. Rico-homem da Maia e antigo alferes do conde Henrique, Paio Soares afastara-se de dona Teresa há uns anos, receando as ameaças da rainha Urraca, mas agora que esta morrera havia quem dissesse que dona Teresa o tentava aliciar de novo e por isso o convidara para passar a Páscoa em Viseu.

Embora alguns ainda recordassem a recusa de ir a Lanhoso ajudar a mãe do príncipe, seis anos antes, não havia nenhuma humilhação irrazoável, nem ofensa pessoal entre ele e Fernão Peres. Todos estimavam aquele nobre portucalense, recordavam com respeito as suas façanhas de combatente contra os mouros, e sabiam também que dispunha dos maiores territórios do Condado. Além disso, estava viúvo, pois a esposa morrera-lhe há dois anos, e do seu casamento religioso apenas haviam nascido duas raparigas, ambas mortas em crianças. Aos quarenta anos, aquele era um homem poderoso mas solitário, e era esse vazio que dona Teresa visava preencher, procurando para ele uma esposa capaz de dar-lhe um varão legítimo. A nova política matrimonial de dona Teresa e do Trava era límpida e interesseira: casar os nobres do Sul da Galiza com as meninas nobres de Entre Douro e Minho, e os nobres de Entre Douro e Minho com as meninas nobres do Sul da Galiza». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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