quarta-feira, 26 de maio de 2010

Cristina da Costa Vieira: Viagem pelo universo feminino de «A Esmeralda Partida» de Fernando Campos. O romance histórico como ponto de fuga

Com a devida vénia a Cristina Maria da Costa Vieira, na sua Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Portugueses e Brasileiros, Viagem pelo universo feminino de «A Esmeralda Partida» de Fernando Campos. O romance histórico como ponto de fuga, publico algumas frases alusivas ao tema.

Cortesia de wook
Edição/reimpressão: 2006, Páginas: 301,Editor: Difel, ISBN: 9789722906142,
Colecção: Documento e Ensaio
Cristina da Costa Vieira 
Abordar a temática feminina num romance histórico cuja diegese é cronotopica-mente localizável no século XV português pode parecer algo contra-producente, devido à invisibilidade a que a mulher está votada enquanto sujeito histórico desta época: com efeito, considera-se ser o Quatrocentos a última centúria da Idade Média, pese embora a artificialidade de determinadas balizas temporais. 1453, ano da queda de Constantinopla às mãos dos Turcos Otomanos, é entendida pelos historiadores como uma data convencional para o gradual Outono da Idade Média em que o reinado de D. João II se insere. O Renascimento que se lhe seguiu representa, em vários aspectos, ou uma continuação ou um agravamento da condição feminina. Fernando Campos em «A Esmeralda Partida» dá conta de como na época do monarca que viria a ser cognominado de Príncipe Perfeito e seria responsabilizado, pelos historiadores portugueses, pela entrada de Portugal na Modernidade5 coabitavam dois tipos de mentalidade: a medieval e a renascentista.
A exclusão das mulheres da historiografia, particularmente da medieval, apassi-vará o seu real peso histórico. Basta apreciar que personagens assumiram o verdadeiro protagonismo nos pergaminhos históricos. Ora, segundo Linda Hutcheon, o acesso ao passado é inteiramente textualizado, ou seja, o conhecimento histórico só existe enquanto texto e depende de textos (o que não equivale, obviamente, a negar a existência do passado). Consequentemente, não estando nem documentada nem publicitada a História da mulher, esta acaba por ser marginalizada. Ninguém melhor do que Cassandra se tornou símbolo mítico da voz feminina profética desprezada, da voz sem texto, como explorou Christa Wolf no romance histórico Kassandra (1984). Fernano Campos em A Esmeralda. Partida, coloca precisamente na voz de uma mulher (D. Filipa, tia materna de D. João II e de D. Joana) a problemática da participação do género feminino enquanto agente activo da História e da absoluta necessidade da preservação de documentos escritos para memória da posteridade: «Destruíram os inimigos do Infante D. Pedro quanto havia de documento que viesse mostrar aos vindouros o que se tinha passado... Ai, meus filhos! Por vezes um tudo nada, assalto e pilhagem de arquivos, destruição de chancelarias, supressão de testemunhos nem que seja de carne e osso, um ápice e nunca mais se saberá pelos séculos adiante o que aconteceu de verdade. Por isso vos quero transmitir estes factos, antes de a minha voz se consumir na fogueira do tempo como um papel a arder no incêndio do paço.  É desta forma que D. Filipa expõe o que viria a ser teorizado por Hegel como a diferença entre as res gestae (os factos) e a historia rerum gestarum (a historiografia dos factos).
 
Cortesia de ichigonotabi
Ora, o mérito de Fernando Campos está em não ter passado em silêncio essa percentagem da humanidade que de um modo até há bem pouco tempo insuspeito influenciou os destinos dos povos, como aquele em que se movimentou D. João II e seus mais directos ascendentes. Christiane Klapisch-Zuber11 alerta para o facto de, paradoxalmente, as mulheres da Idade Média, a quem era negada a palavra, com frequência serem escutadas com respeito, nomeadamente abadessas de mosteiros famosos e esposas ou viúvas pertencentes a famílias reinantes. Como será analisado, o universo feminino tem em A Esmeralda Partida, uma importância estrutural muitíssimo relevante (mais do que em qualquer outro romance histórico deste autor), evidenciando aspectos originais, donde a opção por esta obra. Não é, assim, despropositado, num romance histórico em que a mulher sai do seu habitual silêncio e ocultação enquanto personagem da História, abordar a temática feminina, mesmo quando o protagonista de tal romance - D. João II - pertence ao género masculino. "Género" e não "sexo", porque entendemos que a distinção homem / mulher não radica apenas numa diferença biológica.

Por outro lado, embora o recurso a outras disciplinas como a Linguística, a História e a Psicologia fosse não só inevitável como profícuo, tal interdisciplinaridade característica da teoria narrativa desde 1970 não eclipsou a perspectiva fundamentalmente literária desta dissertação, não só por se enquadrar num mestrado em Estudos Portugueses e Brasileiros, de orientação literária, mas também por ser o nosso objecto de análise uma obra literária, não redutível a uma realidade histórica e/ou psicológica. Julgamos ter empreendido uma viagem fascinante pelo conhecimento, fugindo a lugares comuns. Procuramos, por fim, evitar cair quer numa atitude de vitimização da mulher, quer numa ginecomania que atribui a responsabilidade de qualquer facto relevante a mulheres astutas exercendo a sua irresistível influência sobre homens débeis.
O romance histórico desde que foi plasmado na sua fase clássica seria assim uma narrativa que finge ser registo histórico. Donde a definição tradicional de romance histórico como género híbrido, porquanto ele seria uma espécie de fruto de um casamento contra natura resultante do desaparecimento da fronteira tão guardada entre ficção e História, ou se quisermos, seria resultado da junção - quanto mais conseguida melhor - entre enunciados referenciais e enunciados não referenciáveis. Este é um dos maiores topoi do discurso dominante sobre um género "oximórico", cheio de falsas pistas, e que reenvia para um preceito da estética clássica: atingir a articulação harmoniosa dos contrários. Este hibridismo inerente ao romance histórico já foi alvo de críticas que Manzoni expôs e com as quais, curiosamente, concordou: alguns criticam o romance histórico porque o autor não distingue o factual do verosímil, falhando numa fiel representação da História; outros criticam-no porque o autor opera tal distinção, destruindo assim a unidade da obra. Estas posições são, isoladamente, do ponto de vista de Manzoni, correctas, mas apresentam duas condições irreconciliáveis, pelo que previu para este gé-nero o que, felizmente, não se concretizou: uma vida curta. Amy Elias soube sintetizar muito bem o pensamento do autor de / Promessi Sposi: o romance histórico teria uma morte anunciada porque é um género «hopelessly contradictory».

Podemos agora aventar algumas considerações concernando o primeiro ponto a resolver nesta tentativa de definição do romance histórico, a saber, o isolamento de características semântico-pragmáticas e estilístico-formais que o distingam dos outros subgéne-ros romanescos. Este é um dos busílis da questão.
Evidentemente, a D. Leonor de A Esmeralda Partida, é diferente da D. Leonor, personalidade histórica. Na transposição do relato do historiador para o romance histórico, qualquer personagem se metamorfoseia em personagem ficcional. A D. Leonor de A Esmeralda Partida, como personagem referencial, continua a ser fictícia, ao mesmo nível diegético de personagens não referenciais, isto é, completamente saídas da imaginação de Campos. Porém, introduzida na ficção, D. Leonor continua a evocar a figura histórica, que tem essa propriedade, não negligenciável, chamada existência. É para nós inegável haver uma "référence fictionnelle" , a par de uma "référence réelle", para o mesmo objecto (neste caso, D. Leonor). Deste modo, o referente do romance histórico é distinto do referente simulacral do romance realista. Trata-se de uma diferença fundamental para a aceitabilidade do romance histórico como um subgenera romanesco.

Assim, se D. Filipa e Garcia de Resende, enquanto narradores, destacam nos seus relatos, sobretudo, o vector político, aqueles têm, todavia, a preocupação de não olvidar os geógrafos, cartógrafos, cosmógrafos, matemáticos ou então os simples livres-pensado-res, enfim, os sábios de toda uma nova geração de humanistas que rodeavam os Infantes D. Pedro e D. Henrique e o Rei D. João II. Mas entre estes mestres que servem aos Infantes e sobretudo ao Príncipe Perfeito uma "multidão de mapas" e sem os quais a empresa dos Descobrimentos focada ao longo da narrativa não seria possível (donde o seu relevo diegético) quantas personagens femininas se encontram? Nenhuma. E este dadonarrativo é estruturalmente exigido por um tipo de romance histórico documental , ou seja, está em perfeita consonância com os dados historiográficos da época: uma época que, regra geral, excluía a mulher do saber letrado .

Uma situação análoga estende-se a toda uma série de ofícios que implicam o domínio da escrita, como escrivãos, secretários, "doutores de leis", cronistas-mor, iluministas e copistas. No entanto, a exclusão do universo feminino em relação ao universo cultural é uma opção do autor e não tanto o fruto de uma contingência documental no que concerne os dois últimos casos: efectivamente, recentes pesquisas historiográficas revelaram a existência de uma mão de mulher por detrás de muitos manuscritos, correndo silenciosa nos mosteiros femininos medievais8. Apesar disso, as iluministas e as copistas surgem preteridas a favor dos iluministas e dos "irmãos copistas de São Domingos, (...) de Alcobaça ou do cartório de Santa Cruz" no relato de Resende.

Esta opção narrativa, que compromete significativamente a intersecção entre os universos feminino e cultural, acompanha, de forma parcelar, o domínio dos mestres-professores. O povo considerava perigoso para os Infantes que estes fossem educados "sob a tutela de mulheres" por um receio que não radica apenas na sua possível efeminização. Retirá-los da roda das mulheres e colocá-los sob a tutela de mestres-professores homens era, no relato de Resende, a única via para uma cuidada educação dos mesmos de forma a que atingissem o estado conveniente para um príncipe. Resende salienta esta atitude educativa no que concerne os casos dos Infantes D. Afonso (posteriormente o Rei Africano) e D. João, seu filho (o nosso D. João II). Todas as matérias , desde as sete artes liberais (o trívio e o quadrívio) até à poesia, às armas, à cavalaria, à falcoaria e ao xadrez, são ministradas por preceptores. O esmero que D. Afonso V tem na educação do filho varão implica o recrutamento de mestres sábios, nunca de alguma mestra (que as havia). Tia Filipa, ela própria uma figura culturalmente notável para a época, é, no romance, uma espécie de tutora dos sobrinhos na ausência deD. Afonso V, completando a sua educação com sábios conselhos, mas essa acção parece restringir-se aos momentos passados em família, já que é ao jantar, por exemplo, que tia Filipa admoesta e ensina o sobrinho. Ou seja, não tem o mesmo carácter institucional dos preceptores, ainda que todos os ensinamentos da tia viessem posteriormente a valer ouro para D. João II.
 
A viagem pelo universo feminino de A Esmeralda Partida, de Fernando Campos, chega assim ao seu termo. Tivemos o romance histórico como ponto de fuga: fuga, porque se apresenta simultaneamente como pretexto para um outro tema e um objectivo; fuga, porque resiste a uma cabal definição; fuga, porque também nós andá(a)mos, tal como o fotógrafo do conto A Caminho de Monsaraz', à procura de uma meta, quem sabe inatingível. O estudo empreendido permite-nos concluir da inquestionável condição de romance histórico documentado de A Esmeralda Partida: romance, porque se dá como ficção; histórico e documentado, para adoptarmos a tipologia de Joseph Turner, porque, como romance, revela intertextualidades com a História estruturalmente pertinentes para a intriga, isto é, ostenta uma ligação directa às fontes historiográficas, não incorrendo em incongruências, inverosimilhanças ou anacronismos factuais ou linguísticos, à semelhança dos seus outros romances históricos, também aqui evocados.

Contudo, a relação da narrativa com a História é problematizada ao longo da obra, para o que contribui de forma inequívoca o seu universo feminino. Centrando-se na vida de uma personagem referencial de primeiro plano, D. João II, Fernando Campos não faz uma evocação romântica da governação da Casa de Avis, mas traça uma possível biografia do monarca, que não escamoteia as imperfeições do Príncipe Perfeito, o que desde logo a diferencia da perspectiva oficial da História. Uma biografia onde diversas mulheres provocam em D. João II os mais variados "pecados": a sanha (casos da irmã, a Princesa Santa Joana, e da viúva Catarina da Costa); o receio e a desconfiança (como a Infanta D. Beatriz e a Rainha Isabel de Castela); a raiva e possivelmente uma tentativa de homicídio (sobre a própria esposa, D. Leonor); o amor (por Ana de Mendonça); o estranhamento e a inquietude (a velha da Fonte Coberta)... Não há lugar numa versão oficial para triângulos amorosos ou suspeitas de envenenamento, muito menos quando algumas dessas suspeitas recaem sobre personalidades referenciais de primeiro plano, como o são a fundadora das Misericórdias ou D. Manuel I. Também nessa versão não há lugar para a solidão do mando, quando as mulheres da vida de D. João II já não lhe estão próximas ou não o podem acompanhar mais de perto. Aqui há esse espaço. De modo que A Esmeralda Partida se distancia do romance histórico clássico: esta é uma crónica subjectiva, a que não está registada nos documentos oficiais.
Por outro lado, Fernando Campos desconstrói a crença ingénua na possibilidade de recuperação da verdade histórica através de múltiplos recursos, entre os quais salientámos a disparidade de focalizações e a multiplicidade de narradores, embora subordinados a um único narrador extradiegético, Garcia de Resende, que, deste modo, na qualidade de personagem, obvia a uma focalização omnisciente. Resende e D. Filipa, narradora intradiegética privilegiada, assumem, acima de qualquer outro narrador, um tipo de discurso característico da metaficção historiográfica pós-moderna, pois reconhecem que o acesso ao passado só é possível mediante textos e memórias, que ambos querem conservar (embora cada um com as suas próprias motivações), e que não há verdades únicas mas diferentes versões do mesmo facto histórico. Se D. Filipa ainda se assume dogmaticamente como detentora da verdadeira versão, Resende não escamoteia a sua própria incapacidade de transcrever uma verdade absoluta e a permanência de muitas dúvidas de que talvez nunca se vislumbre a resolução. Diversas figuras anónimas, entre as quais ganham protagonismo as mulheres do povo, apresentam a sua própria versão, menos canónica da História, mas que se poderá aproximar mais da verdade, censurada e proibida.

Entrevimos, desta forma, várias razões para integrar A Esmeralda Partida no conjunto dos romances históricos pós-modernos: pelas reflexões historiográficas que semeiam a narrativa e lhe transmitem, por um lado, a rejeição da crença ingénua numa verdade histórica absoluta (ou seja, a relatividade da História) e, por outro, a morte da referencialidade (no sentido de que o passado histórico é textualizado e o seu acesso é sempre mediatizado através de textos). E romance histórico pós-moderno, também pelo arrojo em oferecer uma biografia não oficial de uma personagem referencial de primeiro plano na História de Portugal, onde o universo feminino se entrecruza de uma forma poderosa e determinante, retratado e por nós analisado nos seus mais diversos ângulos, assumindo por vezes aspectos originais e pós-modernos (destaque-se, por exemplo, o encontro paratáctico entre o Infante das Sete Partidas e a pequena Olga).

Num romance onde o autor transcende a História, a mulher surge não relegada às sombras dos pergaminhos esquecidos no pó, mas como força mo(a)triz da História e d(est)a história. Clio e Calíope não olvidaram aqui as suas congéneres humanas, em que Fernando Campos se inspirou e que metamorfoseou num universo feminino por vezes perturbante, mas sempre fascinante.
Cortesia Cristina da Costa Vieira/ Editor: Difel, ISBN: 9789722906142/JDACT