segunda-feira, 1 de novembro de 2010

António Damásio: «Dar a Palavra aos Sentimentos». Os sentimentos são a expressão do florescimento humano ou do sofrimento humano, na mente e no corpo

JDACT
Com a devida vénia a António Damásio e a Publicações Europa-América, Forum da Ciência nº 58, 6ª edição,Fevereiro de 2004, adquirido em Dezembro de 2004.

Dar a Palavra aos Sentimentos«Os sentimentos de dor ou prazer são os alicerces da mente. É fácil não dar conta desta simples realidade porque as imagens dos objectos e dos acontecimentos que nos rodeiam, bem como as imagens das palavras e frases que os descrevem, ocupam toda a nossa modesta atenção, ou quase toda. Mas é assim. Os sentimentos de prazer, ou de dor, ou de toda e qualquer qualidade entre dor e prazer, os sentimentos de toda e qualquer emoção ou dos diversos estados que se relacionam com uma qualquer emoção, são a mais universal das melodias, uma canção que só descansa quando chega o sono, e que se torna num verdadeiro hipo quando a alegria nos ocupa ou se desfaz em lúgubre requiem quando a tristeza invade.

Dada a ubiquidade dos sentimentos, seria fácil pensar que a sua ciência estaria já há muito elucidada. Mas não está. De entre todos os fenómenos mentais que podemos descrever, os sentimentos e os seus ingredientes essenciais - a dor e o prazer - são de longe os menos compreendidos no que respeita à sua biologia e em particular à neurobiologia. Isto é particularmente surpreendente quando pensamos que as sociedades avançadas cultivam os sentimentos da forma mais despudorada e manipulam os sentimentos com álcool ou drogas ilícitas, medicamentos, boa e má cozinha, sexo real e virtual, toda a espécie de consumos e práticas sociais e religiosas cuja única finalidade é o bem estar. Tratamos dos nossos sentimentos com pílulas, bebidas, exercícios físicos e espirituais, mas nem o público nem a ciência fazem uma ideia clara sobre o que são os sentimentos do ponto de vista biológico.

Cortesia de grandesmensagens
Ao contrário dessas entidades concretas, os sentimentos eram intangíveis. Quando comecei a pensar sobre a forma como o cérebro criava a mente, aceitei sem protesto a ideia de que os sentimentos não cabiam em nenhum programa científico. Podíamos estudar a forma como o cérebro nos movimenta. Podíamos estudar processos sensoriais, tais como a visão, compreender como se organiza o pensamento. Podíamos até estudar as reacções emocionais com as quais respondemos a diversos objectos e situações. Mas os sentimentos, se podem distinguir das emoções – continuavam fora do nosso alcance, para sempre misteriosos e inacessíveis. Não era possível explicar como aconteciam os sentimentos e, ainda menos' o local onde aconteciam.
Tal como era o caso com a consciência, os sentimentos existiam fora das portas da ciência, aí mantidos cuidadosamente não só por uma certa filosofia apostada em negar qualquer explicação neurocientífica pata os fenómenos mentais, mas também por neurocientistas encartados que lhes negavam a entrada A prova de que tomei a sério estas diversas limitações é o facto de que, durante muitos anos, evitei qualquer projecto que dissesse respeito aos sentimentos. Levei muito tempo a descobrir que os obstáculos postos à ciência dos sentimentos não tinham qualquer cabimento e que a neurologia dos sentimentos não era menos viável do que a da visão ou da memória. Mas a realidade de certos doentes neurológicos forçou-me, ao fim e ao cabo, a rever a minha posição.

Cortesia de joaofariaswordpress
Imaginem, por exemplo, encontrar alguém a quem uma certa lesão cerebral tornou incapaz de sentir vergonha ou compaixão, mas em nada alterou a capacidade de sentir tristeza, felicidade ou medo. Imaginem uma pessoa a quem uma lesão de outra região cerebral tornou incapaz de sentir medo, mas não interferia com a capacidade de sentir compaixão ou vergonha. A crueldade da doença neurológica é um poço sem fundo para as suas vítimas - os doentes, bem como os médicos que os observam e tratam. Mas a doença neurológica também tem qualquer coisa de redentor: a doença funciona como um bisturi que separa o cérebro normal do cérebro doente com espantosa precisão e que assim permite uma rara porta de entrada na fortaleza do cérebro e mente.
A reflexão sobre a situação destes doentes e de outros com problemas comparáveis levou-me à construção de diversas hipóteses. Primeiro, era óbvio que certas espécies de sentimentos podiam ser bloqueadas pela lesão de um sector cerebral discreto; a perda de um sector cerebral específico implicava a perda de uma classe específica de fenómeno mental. Segundo, era também óbvio que sistemas cerebrais diferentes controlavam diferentes espécies de sentimentos; a lesão de uma certa região anatómica cerebral não causava a perda de todas as formas possíveis de sentimento. Terceiro, quando os doentes perdiam a capacidade de exprimir uma determinada emoção também perdiam a capacidade de sentir o correspondente sentimento. De forma surpreendente, contudo, alguns doentes incapazes de sentir certos sentimentos eram ainda capazes de exprimir as emoções que lhes correspondem - ou seja, era possível exibir uma expressão de medo mas não sentir medo.

Cortesia de teresita
A emoção e o sentimento eram irmãos gémeos, mas tudo indicava que a emoção tinha nascido primeiro, seguida pelo sentimento, e que o sentimento se seguia sempre à emoção como uma sombra.
Apesar da intimidade e aparente simultaneidade, tudo indicava que a emoção precedia o sentimento. O entrever desta relação específica permitiu, tal como iremos ver, uma perspectiva privilegiada na investigação dos sentimentos.
Estas hipóteses podiam ser testadas com a ajuda de técnicas de neuroimagem que permitem a criação de imagens da anatomia e actividade do cérebro humano. Passo a passo, primeiro em doentes e depois tanto em doentes como em pessoas sem doença neurológica, começámos a mapear a geografia do cérebro que sente. A meta era elucidar a teia de mecanismos que permitem aos nossos pensamentos desencadear estados emocionais e construir sentimentos». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa.

Cortesia de mensagensvirtuais

Continua.

Cortesia de António Damásio/JDACT