sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Raul Rêgo. «Nisto, como em tantas outras coisas, os nossos tempos não são muito diferentes daqueles em que ‘o muito magnífico’ senhor Diogo da Fonseca, fidalgo da Casa de El-Rei Nosso Senhor e do seu desembargo, corregedor do crime nesta cidade e juiz dos bens confiscados, batia à porta de Damião de Goes para o levar preso e o entregar ao alcaide do cárcere da Inquisição»

Cortesia de assirioalvim

Carta-Prefácio
«Não têm os leigos à linguagem dos jurisconsultos ou dos teólogos, a mesma dificuldade em entender certos tratados e minutas de hoje, certos interrogatórios policiais contemporâneos? E tantas vezes é só a língua que se embrulha ao expositor, ao interrogante, ao respondente, se torce ou descose, não deixando ressaltar claro o pensamento de quem pergunta, de quem responde, ou de quem defende ou acusa; e, na maior parte dos casos, não é clara a expressão porque não tem clareza o mesmo pensamento de quem fala.
O processo de Damião de Goes, como eu o li hoje, deponho-o nas suas mãos. Ao longo dele fui vendo a trabalheira com que tenho sobrecarregado a sua amizade e posto à prova seu talento de jurista. Por mais de uma vez abriu você o guarda-chuva dos códigos, das leis atiradas para a Diário do Governo, como quem atira o trigo para a eira onde há que ir buscá-lo, peneirá-lo, antes de o fazer em farinha e cozer no bolo de contestação, em minuta, em reclamação. E há-de estar-se sempre atento a que de bocas biqueiras se trata as dos julgadores, não lhes servindo o primeiro centeio, cevada ou trigo que se lhes atire. Nisto, como em tantas outras coisas, os nossos tempos não são muito diferentes daqueles em que «o muito magnífico» senhor Diogo da Fonseca, fidalgo da Casa de El-Rei Nosso Senhor e do seu desembargo, corregedor do crime nesta cidade e juiz dos bens confiscados, batia à porta de Damião de Goes para o levar preso e o entregar ao alcaide do cárcere da Inquisição (maldita).

Cortesia de wikipedia

Na defesa das liberdades públicas, na de pensar e de se exprimir, na defesa do que é recto contra o arbítrio, em prol de uma norma equitativa de proceder contra o discricionário, desde sempre Você tomou lugar na plêiade de advogados que não têm cessado de clamar por verdadeira justiça, nesta nossa terra portuguesa.
Nossa porque nela nascemos, mas onde muitas vezes nos sentimos bem estranhos. Como Damião de Goes. Valha ao menos aos pobres como eu a grandeza de alguns que a mesma senda trilharam.
Por direito adquirido ao meu reconhecimento e por amizade, aqui escrevo o seu nome. Sempre o encontrei a meu lado, quando à minha porta bateram os herdeiros daquele fidalgo da Casa de El-Rei Nosso Senhor que, em 4 de Abril de 1571, foi buscar Damião dr Goes à sua pousada.
Haviam esses nobres e grandes senhores por suma honra o servir de esbirros, na altura mesma em que as terras que seus maiores tinham descoberto e conquistado se iam esfarelando e caindo em poder de outros mais fortes ou mais inteligentes; e em que a própria independência estava por um fio, vindo a perder-se pouco tempo volvido.

Cortesia de wikipedia

E os filhos ou netos dos que tinham talhado o reino na Europa, o tinham levado depois à África, à América e ao Oriente, entretinham-se a prender gente só porque ela vestia camisa lavada ao sábado ou escrevia sobre coisas onde curteza de vistas deles nem a dente metia. Que ideia faria de Erasmo ou de Melanchton o desembargador Diogo da Fonseca? E quantas páginas teria ele lido de Damião de Goes? Não compreenderia lá. muito, não, mas não deixava de sentir proa em vir buscar o cronista a casa para o entregar ao alcaide dos cárceres do Santo Ofício (maldito).
Na prisão de Damião de Goes persiste um mistério intrigante: o de ter demorado tantos anos a sua detenção sobre o dia em que fora denunciado ao Santo Ofício (maldito) por um companheiro de Inácio de Loiola. E tanto o denunciante como o fundador da Companhia de Jesus tinham sido seus companheiros e a ambos recebera em sua casa de Pádua! Com efeito, a primeira denúncia contra ele apresentada é a do padre Simão Rodrigues, em 5 de Setembro de 1545, em Évora. Dois dias depois, o mesmo jesuíta lá

Volta a transpor as portas da Inquisição (maldita) para melhor especificar mais pormenorizar, o que dissera. Ruminara, bem ruminado, tudo e não desejava que a rede deixasse malha larga por onde se lhe pudesse escapar o rival». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT