terça-feira, 30 de janeiro de 2024

A Casa do Pó. Fernando Campos. « Carregavam suas alimárías, no meio da mais feroz violência, e tornavam-se para suas casas sem haver quem lhes pudesse resistir por serem muitos. Todo aquele dia, a noite seguinte e parte do outro dia…»

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O Breviário

«Para se comerem tira-se-lhes a casca, que é como a do figo mas de cor citrina. Partidos pelo meio ou de través, têm uma cruz em forma de tê. Afirmam orientais e Palestinos ser aquele o fruto proibido de que Adão comeu. Eu creio serem estas as bananas do nosso São Tomé, segundo a informação que me têm dado delas os que as viram e comeram. E para que falar dos vinhos de Chipre, tão nomeados e louvados em todo o Oriente, se a esposa nos Cantares de Salomão os louva com estas palavras: Botrus Cypri dilectus meus mihi?

Neste espaço de tempo, tomou tanta amizade connosco um mancebo grego, de nome Constantim Polachi, morador numa aldeia chamada Thimo, distante de Pafo uma grande milha, que não podia passar um dia sem nos vir ver. Convidava-nos para comer em sua casa, provia-nos de tudo o que de melhor havia na terra, sem interesse algum. Como não sabíamos o romeno nem ele o veneziano, só nos entendíamos por meio de intérprete. Esta dificuldade de entendimento arreliava Constantim, que às vezes, quando estávamos à mesa, tomava uma faca na mão e com a outra mão tirava fora a língua e arremedava cortá-la, dizendo que lhe vinha essa tentação por não ter palavras para exprimir quanta amizade nos tinha.

Três dias depois de estarmos em Pafo, regressámos à nau. O tempo mostrava-se algum tanto bonançoso e nós precisávamos de saber a determinação do patrão. Mas fomos encontrar todos metidos e enfrascados em suas vendas e mercancias, com mais vagar do que desejáramos. Amanhã, proponho eu ao meu companheiro que já se encontra deitado em seu catre, enrodilhado na sua manta, vamos visitar outro ponto da ilha? Com todo o prazer, irmão Pantaleão, responde bocejando cheio de sono e deixando resvalar as camândulas por entre os dedos. Ressonava. Eu também não tardei a adormecer. Mas o dia seguinte esforçou-se tanto o vendaval e o mar começou a empolar-se de tal maneira e a embravecer que, acordando estremunhados, cuidámos que nos iríamos perder naquele porto. A nau estava apenas com duas âncoras, mas, vendo o perigo, ordenou o piloto que lançassem mais duas, uma das quais era a que os Venezianos chamam âncora mestra, de tamanho e peso tão descomunal que é necessária toda a gente da nau para a levantar e largar. Só a usam em casos de tempestade extrema como este.

As ondas pareciam montanhas, de uma lividez esverdongada, que nos queriam tragar. Não se podia, por mais cordas que estendessem para os marinheiros se agarrarem, caminhar de um lado ao outro. Qualquer objecto mal amarrado ou acondicionado andava deslizando e marrando com o que encontrava. Sairmos da nau era coisa impossível. As duas naus francesas que no porto estavam e se dirigiam para Trípoli, na Síria, com a grande tempestade que fazia quase as não víamos nem elas a nós, pois as vagas desencontradamente ora nos alevantavam às nuvens ora nos desciam aos abismos arenosos. Andavam fora de si não só os passageiros, com doloridos gritos e lamentações, mas também marinheiros e oficiais, homens tão experimentados no mar. O que me dava mais pena era ver meu companheiro jazer em contínuos desmaios e quando tornava a si, abraçar-se a mim e pedir-me a confissão. Foi terrível a noite. Atribulados e cansados, ao romper do dia, com o vento soprando cada hora com mais ruidosa fúria, vimos surgir do esverdinhado do mar e das nuvens que nele assentavam o vulto negro e enorme de uma nau veneziana. Aproximava-se com incrível rapidez aquela negra sombra e com ela os lancinantes gritos que ao passar deixou em farrapos pelo ar, num turbilhão que parecia um inferno. Mostrava-se o mar cada vez mais enfurecido e o chuveiro era intenso. Sobrelevava o nosso próprio perigo o espanto e admiração de ver coisa tão horrenda: aquela massa enorme afastar-se a correr para ir esfrangalhar-se num estrídulo e pavoroso fragor, que estrondeou acima dos uivos do vento e do rebentar das ondas, na penedia junto de terra. Sem sabermos que cuidar nem que dizer, ficámos por momentos especados, a respiração suspensa, boquiabertos, atónitos, o coração a bater fortemente, e o nosso assombro aumentou ao vermos o mar começar a aquietar, o vento a calar, o chuveiro a cessar e o céu a aclarar. Eram quase dez horas do dia.

Presenciaram o desastre os vilões da montanha, que sempre do alto, dia e noite, têm suas vigias por causa dos corsários. Gente bárbara e cruel, logo acudiram à pressa, trazendo consigo suas bestas, e começaram desumanamente, sem nenhum temor de Deus, a roubar e carregar quanto o mar lançava fora. Querendo-lhes ir à mão os pobres homens que do naufrágio e da fúria das ondas escapavam, nus, miseráveis, meios mortos, com suas armas os ofendia como contra inimigo mortal aquela maldita canalha. Carregavam suas alimárías, no meio da mais feroz violência, e tornavam-se para suas casas sem haver quem lhes pudesse resistir por serem muitos. Todo aquele dia, a noite seguinte e parte do outro dia exerceu aquela gente tão impiedoso latrocínio, até que acudiu a justiça de Limison, cidade maior e mais importante que Pafo, que a muito custo correu com os ladrões. Também de Pafo acorria muita gente e os das naus, estando já o mar de todo sossegado, saíram em terra. Meu companheiro e eu começámos a caminhar para onde estava a nau perdida, que seria cerca de meia légua, e ao chegarmos apertou-se-nos o coração com o espectáculo lastimoso de tanto destroço, tanta gente morta e ferida espalhada pelo areal, que, de compaixão, não pudemos conter as lágrimas». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,