sábado, 13 de janeiro de 2024

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «Paz sim, mas sossego?, irritou-se Michael. Aos judeus, colocam-lhes um J no passaporte e, se puderem deixam-nos na fronteira! Aos refugiados, quando não os podem mandar imediatamente para o navio, a caminho do Brasil e da América, enviam-nos para as praias!»

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Mary

«A afirmação tinha um duplo sentido, pois ele andava a namoriscar uma secretária da Embaixada americana, Janice. É bonita, disse eu, enquanto passava um dedo sobre a lâmina. Cuidado, não te cortes, avisou. É tão afiada que a casca das maçãs fica fina como uma folha de papel.

Admirei a arma e depois devolvi-a ao meu amigo, que a recolocou no coldre com cuidado, guardando o conjunto no bolso interior do casaco. Deu novo gole na aguardente e pousou o copo. Baixou a voz:

Os alemães andam a queixar-se cada vez mais ao capitão Lourenço. A semana passada, um padre do Barreiro foi chamado à PVDE. Acusaram-no de fazer sermões contra a Alemanha. Reflecti. Se eles chegavam ao ponto de perseguir padres, fazer o mesmo ao coronel Bowles era fácil. Michael afastou-se do balcão e eu segui-o. Quando saímos para a rua, perguntou-me: E como vai a Carminho?

Michael nunca antes me perguntara por Carminho. Estaria a fazê-lo apenas porque se sentira enciumado com o meu caso com Mary? Ou estaria a tentar proteger-me, recordando-me a minha noiva oficial para me afastar de uma relação com Mary, que comportava riscos, devido às imprudências do coronel? Fomos ontem ao cinema, a Carminho, a irmã e eu. Fomos ver a estreia de Rebecca, do Alfred Hitchcock. Estavam lá o Lawrence Olivier e a mulher, a Vivien Leigh, que vieram de propósito cá para fazer publicidade ao filme. Michael não ficou impressionado. Era comum, naqueles tempos, virem a Lisboa muitos famosos de Hollywood. A mando da censura, os jornais davam enorme destaque às suas estadas, com o óbvio propósito de distrair a população. Ela tem andado bastante ocupada - continuei. Organizou uma festa para as vítimas do ciclone, e conseguiu que alguns estrangeiros participassem. Até a Josephine Baker cantou!

Os artistas estrangeiros não podiam actuar em Portugal, tal como os refugiados estavam impedidos de trabalhar. Porém, o general na reserva Joaquim Silva, pai de Carminho, era amigo de Salazar, e movera as suas influências. Assim, uma excepção foi concedida, e o público ouviu a voz de Josephine Baker, uma célebre cantora da Broadway, que fugira de Paris depois de ter sido acusada de espionagem pela Gestapo. E viva Salazar, ironizou Michael.

Como correu bem, continuei, a Carminho quer organizar mais espectáculos. Falou com umas pessoas do jornal O Século, e formaram uma comissão. Do Século? Esse é dos nossos, comentou Michael, entusiasmado. Sabes o que se passou lá? Contou-me que um dos jornalistas enchera as instalações de emblemas da RAF e bandeirinhas portuguesas e inglesas, com o ámen do director. Para o meu amigo, era uma pequena mas saborosa vitória. Acrescentei que a comissão já tinha uma canção pronta, um hino para os espectáculos:

O título é: Obrigado, Portugal! Michael estacou de repente: Obrigado, Portugal? Obrigado, Portugal, porquê? Abri os braços: Então não estamos a receber bem os refugiados? Michael abanou a cabeça, desagradado: Jack, não me insultes. Não repitas a propaganda de Salazar. Ripostei: Propaganda? Ora essa, então não somos o único país da Europa onde eles podem viver em paz e sossego? Paz sim, mas sossego?, irritou-se Michael. Aos judeus, colocam-lhes um J no passaporte e, se puderem deixam-nos na fronteira! Aos refugiados, quando não os podem mandar imediatamente para o navio, a caminho do Brasil e da América, enviam-nos para as praias! Para a Ericeira, para a Costa de Caparica, para a Figueira da Foz. Pelo menos apanham sol, e tomam banhos de mar!, exclamei.

Michael recomeçou a andar, indignado: E os que ficam por aqui são depenados! Até para irem à casa de banho nos cafés têm de pagar! Os donos das pensões cobram-lhes fortunas, e os senhorios pedem um dinheirão por um quartito! Já para não falar num apartamento mobilado! Infelizmente, era verdade. Muitos portugueses lucravam com a situação dos refugiados. Às vezes, mal chegavam às fronteiras, compravam-lhes a preços insultuosos as jóias, os casacos, até as roupas. Obrigado, Portugal, repetiu Michael, com desdém. E os vistos, e os bilhetes? Há imensos que são enganados pelas agências: pagam mais de 50 contos pelos bilhetes e pelos vistos e ficam a ver os navios partir sem eles!

Suspirou fundo. Estávamos a passar em frente de um quiosque, a caminho dos Restauradores. Michael parou e observou os jornais. Olha para isto! Vês como os nazis são fortes neste país? Repara nisto, e apontou com o dedo para as bancas. O Sinal, A Voz, A Acção é tudo deles! A Esfera também! O Diário de Notícias e o Diário da Manhã, a mesma coisa, tal como aqueles ali, e apontou para o Diário Popular e o Jornal de Notícias, resmungando: Tudo boche. E nós, o que é que temos? Apontei noutra direcção: Bem, temos o Anglo Portuguese News! E não disseste que O Século era dos nossos?» In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Literatura, II Guerra Mundial, Conhecimento,